quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Ensolarado


Foi assim, no meio de tanta festa, barulho. Um calor imenso que saia dos corpos em festa. Era um dia de festa. Um carnaval fora de época. Fora da época dos comuns, porque pros que ali se reuniam, era um carnaval constante essa coisa que falam que é a vida. Pois foi, assim mesmo, inebriados pelo amarelo do sol, que se refletia em amarelo-festa. E se liquidificava em amarelo-bebida. Entre um grito e outro, uma gargalhada, um gesto forte da dança, ela fala pra ele, só pra ele: "eu te amo". Rasgou-se o vão do infinito. O vento parou, o mundo inteiro engatou a ré. A órbita do universo se desembestou. E todo bolo de palavra que estava por dentro do corpo dele, retida, se remoeu todinha. E num tempo mínimo, ele viu a vida de um sujeito que, até aquele momento, era descrente, mudar. A fala da moça saiu tão descarada pra ele que, mesmo ele sendo um ator constante, não conseguiu improvisar e devolveu com toda a sua vida a frase pra moça de seu olhos: "eu também te amo".
Ah, seu moço, como essa frase tava querendo sair. Foi a alforria de um pedaço de vida que se colocou livre no ar do mundo. E ali, eles juntos se aprometeram, de um se relampageuear nos braços do outro.
- Contigo, moça eu vou desatar tudo que é nó.
-Contigo moço, vou acertar o passo e voar com você pela abrangência do infinito, na velocidade rara de um OVNI.

E assim ele mais ela terminaram juntinhos, abraçados um na cintura do outro, dançando o forró mais lindo que se dançou debaixo daquela lona amarelada, sentindo a quentura daquele chamego, que só eles sabem. No mundo inteiro. E o amarelo continuou a brilhar e esquentar a moleira daquele povo todo. Só que não vinha mais do sol de meio dia, nem da cor da lona da festa. Muito menos da bebida. O amarelo que alumiava todo o globo da Terra saia da cabeça do moço e do sorriso daquela moça que devolvei a vida pro seu amor.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Uma mensagem de amor

Ele se riu, quando viu o recado dela. Não esperava que retornasse. Na verdade, esperava, sim. Mas é que ele tem tanta vergonha de dizer o que sente, que preferiu não cogitar a hipótese d'ela responder. E ele acabou por descobrir que, depois de algum tempo, as coisas vão ficando melhor. As feridas sempre cicatrizam, se remediadas. Não se via mais sozinho. Os dois passaram a mandar recados diários, um para o outro. Era uma tentativa de alguma coisa que ambos não sabia. era um atirar-se no escuro, sem coragem, medo, nada. Era só a ação de se lançar no mundo: no mundo deles dois.

Gostava de ler os recados dela e ficava imaginando suas expressões, desenhava seu rosto em cada pedaço de memória, construia uma voz: era uma voz linda e tão doce. Imaginava o tom de sua pele, a quentura de sua respiração em seu ouvido, quando ela dizia o nome dele.Do mesmo modo, ela escrevia em pedaços de papel o nome dos dois. sentava em frente ao espelho e imaginava como seriam os fins de semana, os começos e os meios - todos com ele. Gostava do que ele dizia, fazia. Ele era dela, em seus sonhos mais bonitos. Os dois eram lindos.

 Ela, ainda uma incógnita, cheia de incertezas, assim como ele. Ele era exatamente o que ela precisva. Ela era exatamente o que ele queria precisar.
E assim seguiram - se falando - até que um dia esses dois corpos, essas duas almas e suas tantas incertezas e belezas irão se fundir em um estalo de beijo, até que eles sejam um. Um, somente um. Um gesto, um gosto, um sorriso.Um abraço. Uma vida cuidando da outra. Uma luz.Uma brisa que acaricia a pele.Uma mensagem de amor.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Pois é

Pois é. Hoje, neste tempo presente, tô completamente desfavorecido e não pago. Nunca fui tão desnudado em toda minha vida. Tô me sentindo um passarinho preso na gaiola nossa de cada dia.

Capitalismo do Cão abre a temporada. E o próprio encardido me diz, com a boca cheia de dentes e as mãos cobertas de sangue dos meus companheiros, "Bem vindo ao lado oposto do gráfico". Deixo o meu crachá com o porteiro do edifício. Recebo um copo com cachaça e um bolo com recheio de chumbinho. Nada no bolso. Pego as mãos do Cão e esfrego no meu peito descamisado. Com o sangue dos meus oprimidos, pinto uma camisa, com um quê de socialismo.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Pergunta ao espelho.

Onde eu fracasso como artista?

Quando não me permito. Quando não deixo o mundo me atravessar o peito. Não sou um bom artista quando me coloco, mesmo que inconscientemente, em um lugar a parte, em relação ao outro: quando me prendo em mim. Acredito que o fazer artístico e humano provém do contato com o mundo, da implicação com ele. Do confronto com os outros. O confronto são os outros. Os outros do mundo. Os outros dentro de mim. Tem muita gente dentro de mim.
Se estou comigo, só comigo e mal comigo, de muito não adianta fazer porque o feito será uma resposta a mim – é claro que, além d’eu estar dentro de um universo – onde tudo ocorre ao meu redor e onde eu também participo das ações, estou em um outro universo: Eu. Estou no universo de mim mesmo, com minhas incertezas, agruras, com minhas deficiências, doenças e também risos, amores, sonhos, paixões...
O fracasso vem quando sou óbvio (coisa que detesto! Acredito que o óbvio, todos gostam e preferem porque é previsível. Já o viram e, por isso, não há margens de erro ou fracasso.); quando reproduzo os conceitos e trejeitos dos velhos de ontem. O novo é algo que ainda não se viu e, por isso, causa medo, incerteza. O novo é se jogar no escuro, estar à sua própria sorte. Nesta fração de tempo é você e mais ninguém. Sem o mundo, sem o Deus. Sem nada, só o nada e você mesmo. Sou um fracasso (também) como artista quando não dou este passo à frente, quando sou um corpo estático. Quando permaneço sob a condição de um tripé – inerte, equilibrado -, com medo de quebrar a terceira perna e, para não cair, dar o primeiro passo e depois o outro e depois o outro e depois o outro... Porque nem sempre estar em equilíbrio é estar bem.
É por isso que brinco de ser. É por isso que eu sou um ator. Mas isso não me basta. Brincar de ser não é ser verdadeiramente. Então, ando por aí, me mutilando a aparência, o pensamento. Sufocando algumas vontades, libertando outras pessoas de dentro de mim, estuprando a ingenuidade e a pureza-nossa-de-cada-dia. Ando por aí me jogando no mundo, aviltando meus princípios, reinventando uma maneira cínica de estar vivo. De sobre-sair nessa massa densa que é o mundo.


Quero ser perceptível até aos olhos dos cegos. Quero caber no universo - meu corpo não é o meu número. Minha língua é maior do que a minha boca e as palavras não aguentam dentro dela. Sou maior do que eu mesmo. Sou uma hipérbole-interjeição-tropical. Luto contra mim porque sou meu próprio inimigo. Mas também sou meu herói.
Sou um fracasso como artista quando não sou o avesso do avesso.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

dissonante

[Diálogos diversos interrompidos. Ao passar do tempo, todos os diálogos são ouvidos simultaneamente]
...qualquer uma! Desde que bem gelada...
...ahahahahahahahaahahahahahahahahahah...
...Lembra daquela morenaça que te falei?...
...é, o trânsito essa hora..
...ah, uma vez, só pra experimentar...
... cara, acho que não...
...foi uma situação bem, assim...
...mas é claro que eu...
...não, aí ele me disse que estava...
...ai, menina, tu não sabe o que aconteceu ontem...
...lembra daquela vez que...
...você fuma?...
...sem colarinho...
...meteu três, três gols no teu time...
[Pausa. Desliga-se. Pensativo. Bebe e pensa. Olha e fala]
Engraçado. Com você não. Com outras pessoas. Descobri uma coisa hoje. Na verdade, já havia descoberto, mas não reconhecido. Não consigo encarar  as pessoas, nos olhos. Meus olhos são duas esferas fugidias. Dois planetas fora de órbita. Incessante no movimento. Olho tudo ao meu redor, mas não olho nada também. Sei lá, vai ver é o medo de me descobrirem e arrancarem do meu corpo cínico um eu que nem mesmo conheço. Mas me reconheço, sabe?
[pausa]
Os olhos são o ponto fraco do homem. Por mais rígido que seja o homem, são nos olhos onde se concentram todas as fraquezas, defeitos.A gente se esconde por detrás dos olhos. Úmidos e frágeis, os olhos são o que são. Meu corpo todo forja uma maneira de ser o que a sociedade espera. E é nesta espera que fica represada todas as minhas  fragilidades. Todo o meu câncer. Eu por inteiro.  [micro-pausa] Eu sou um câncer em mim. [pausa seguida de silêncio pesado]
Tem vezes que olho. Encaro. Mas visto outros olhos. Não vejo, Não me vejo. Na maioria das vezes não sou eu em mim. Mas, tudo bem. Quem realmente é? Tá, não precisa responder. É retórica. E retórica é essa vida, mesmo. Oi? Não prestei atenção no que você falou. Desculpa. Ah, sim, quero mais um copo.
[coloca os óculos escuros, enquanto o outro age com estranheza]
É melhor. Vou colocar os óculos escuros. Sei que são duas e oito da manhã, mas é por precaução. Não quero te assustar com meus tumores radioativos. Chega de leitura radiográfica da alma. Pronto, bloqueei a minha passagem. Mas, então, qual a sua música favorita?

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Até hoje.

Faz o possível e o impossível para que ela o veja e, ao menos, lhe dê um sorriso, que seja. Ou então, pelo menos, a impressão de que ela percebeu a sua existência no mundo. Mas, ao invés disso, é o avesso que ele tem. O não sinal. a incorrespondência. ela é a anti-reação. Para ele é incômodo e estranhamente absurdo. sim, porque, em outros tempos, não muito remotos, eles eram ligados. tinham  uma correlação. Ou quase.
só que, de uma hora pra outra, tudo foi envolto de uma textura fina, muito fina, porém, sendo o suficiente para que não houvesse maneiras de se retomar o que era em comum: os dois. Juntos. E assim permaneceram: distantes. Um com uma ânsia de reaver o que lhe foi tirado pela distância, aquilo que lhe foi de direito, e querendo com instância. o outro...ah, deixa queito...

Foi que num dia desses, um chegou para o outro e colocou tudo sobre a mesa, para que ali pudessem decidir o futuro do mundo. O mundo deles. Pois bem, tudo o que foi registrado pela caixa de memória da vida: um incisivo monólogo-retórico, entrecortado, levemente, com uma única frase: "Cara, eu não sei."... O inimigo foi derrotado pelo cansaço. Foi embora mudo. Não falou mais nada após. Não soube de nada mais. Foi embora e só.
Tem dias que insiste, consigo mesmo, mas acaba perdendo. Tem dias que não tenta nada. Às vezes funciona.

Não se sabe mesmo o que aconteceu. Até hoje.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Conto de fadas


Antes, era como um momento leve, suspenso no ar. Muito leve e suave. Era um quase transbordamento. Era uma brisa leve no rosto, um carinho na cabeça, dedos alisando os cabelos. Antes era um quentinho bom, um cheiro de pele macia. Era um sorriso espontâneo. Era uma vontade realizada e outra vontade e outra realização. Era assim, só que bem mais.
Hoje é indiferente. É um momento denso, tenso, pesado. É um momento bruto e rascante. É um frio da madrugada, que corta a pele. Um soco no estômago, mãos esganando o pescoço. Hoje é um deserto, um cheiro forte de mofo. Um quarto vazio. Uma casa suja. Hoje é um dia esquecido. Um par de olheiras, um rosto acabado em frente ao espelho. É uma vontade não realizada. Um filho abortado. É um membro amputado. Hoje é uma caixa de antidepressivo. Dois comprimidos de calmante. Um dia inteiro dormindo. Um talho de navalha em cada pulso. Um grito seco, um choro abafado. Uma alma engasgada. Um peito afogado. Uma voz calada. Um monstro radioativo. O apocalipse segundo João. O revés do conto de fadas. Hoje, ela é uma mulher abandonada.  

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Inquietude


 - "O que me faz mudar de ideia? "A inquietude.
"O que me faz ser assim...[?"] são os outros. Os outros do mundo. Os outros dentro de mim. Tem muita gente aqui.[bate com a ponta do dedo indicador na cabeça]
"O que me faz ficar aqui? " Ahahahahahahahahahahahaha! – Todos eles! [aponta para as  outras pessoas] É por isso que brinco de ser. É por isso que eu sou um ator. Mas isso não me basta. Brincar de ser não é ser verdadeiramente. Então, ando por aí, me mutilando a aparência, o pensamento. Sufocando algumas vontades, libertando outras pessoas de dentro de mim, estuprando a ingenuidade e a pureza-nossa-de-cada-dia. Ando por aí me jogando no mundo, aviltando meus princípios, reinventando uma maneira cínica de estar vivo. De sobre-sair nessa massa densa que é o mundo.
Quero ser perceptível até aos olhos dos cegos. Quero caber no universo - meu corpo não é o meu número. Minha língua é maior do que a minha boca e as palavras não aguentam dentro dela. Sou maior do que eu mesmo.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Sozinho

 "Alô. No momento não posso atender. Deixe seu recado após o sinal..."


 - Carlos, Carlos, você está aí? É Nina. Tem um mês, quase, que cheguei ao Brasil e você sequer me ligou...O que aconteceu? fala comigo, por favor. Me liga. Beijo.

***

 Depois de algum tempo, acostumei-me com a ausência da Nina. experimentei um sentimento que, no fundo, é até bom.Descobri que além de estar sozinho, estou comigo. Foi por isso que acabei passando um tempo em Angra. Nessa época do ano, agosto, não tem muita gente em veraneio, até porque é inverno. Só moradores, o mar e mais nada.Fiquei instalado numa casa antiga, que minha família comprou quando ainda eu era bem pequeno...

terça-feira, 13 de abril de 2010

Estranho

Acordou. Como todos os dias faz. Não por querer. Mas porque a vida exige que você acorde: exige que você levante da cama.
Tudo lhe parecia tão confuso. Não sabia mesmo se fazia parte daquele lugar. Naquele dia, ele acordou de um jeito diferente. Como não fazia todos os dias...
Acordou com um nó, não sei. Uma vontade de chorar. Uma tristeza que não sabia de onde vinha e porquê vinha. Levantou o tronco da cama e se pôs sentado. Nu, com o lençol branco por cima do sexo. Sentou curvo, como se fosse ele “O Pensador”, de Rodin.Tentou descobrir, sem sucesso, a causa de tanta tristeza. Do jeito que estava foi. Pôs-se em frente ao espelho grande que havia no quarto. Gostava de espelhos. Mas sentiu vergonha e assombro, naquele dia, de ver tanta estranheza. E ficou ali, sem muito se mover, olhando, olhando, como quem quisesse descobrir mais de si. Mas é que não conseguia.Então, fechou os olhos e tentou olhar para si, por dentro. Não via nada. Via o nada. Engoliu-se a seco. E quando abriu os olhos: chorou.
Era um silêncio maior do que ele. Intoleravelmente maior do que ele. Ali, naquele quarto de apartamento, ele brincava de construir um futuro para si, de construir uma identidade, um rótulo. Um quarto de um futuro graduado em - o quê mesmo? - ah, sim, Medicina. A Medicina: "Arte e ciência de curar e prevenir as doenças.". "A mais nobre das profissões", pensava até então. Ter a habilidade de curar doenças e salvar vidas, por assim dizer, era como se ele fosse o próprio Deus. Mas era um deus antropomorfo, bem pintado. Um deus de gesso. Um deus que se se é quebrado esfarela e só se tem o oco. Então, ele era um deus morto.
Sentou-se de fronte ao espelho e chorava consigo mesmo, talvez de medo, talvez de vergonha. Talvez porque era ele mesmo. Ou não. Pode ser que não fosse ele mesmo. Pode ser que ele fosse todaquela nomenclatura de futuro-doutor-na-família. Mas a nomenclatura - descobriu ele - a nomenclatura que era de gesso. E o gesso quebrou, virou pó e o oco era a sua personificação.
Confuso, repetiu para aquela figura estranha do outro lado do espelho que, por incrível que parecesse, era ele mesmo:
_ Eu sou Caio Albertini, tenho 25 anos. Estudo medicina. Quero ser médico e...eu não sou isso que estou vendo. Eu não isso, eu não sou. Não. Eu não isso. Eu não sou isso. Eu não isso. Eu não isso. Eu não isso. Não. Eu não sou. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou isso. Eu sou horrivelmente isso.
Tomou banho. Vestiu-se. Comeu algo e saiu.
Entrou no mundo que, até então, jurava não fazer parte. No meio de tanta gente ansiosa para atravessar ficou. Comungando da mesma ansiedade, esperando o sinal vermelho, cor que gostava. Sinal vermelho. Foi atravessado com os outros corpos apressados e engravatados.
Procurou um amigo. Mais velho. Médico.
- Cara, estou doente. Você precisa me receitar alguma coisa. Me examina. Me encaminha pra qualquer coisa. Você precisa fazer alguma coisa comigo. Eu estou doente.
O amigo examinou. - Pressão arterial 12 por 8, normal. Respira. Solta. Batimentos normais. Muco, respiração, coloração das gengivas, íris. Tudo normal. Você não tem nada.
- Não é possível...
- Sim, é possível. Tão possível que você está sem nada. Está limpo.
Caio não acreditou. Saiu do consultório, deixando no ar aquele encontro pra tomar uma cervejinha, mas que nunca ocorreria. - Vamos marcar uma cervejinha qualquer dia desse, caio? Só pra esfriar a cabeça.
- vamos sim! Te ligo. Um abraço, cara!
- Não é possível. Não é possível...tem alguma coisa errada. Eu sou a coisa errada. Eu sou o meu erro. É isso!
Caio não foi à aula, como também não ligou pra namorada e muito menos quis qualquer outra coisa, além de.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Telefone

- alô.

- Não precisa falar nada é que eu não quero ficar sozinho sempre detestei essa ideia de ficar sozinho eu queria que você não fosse embora que você não me deixasse eu sei que não sou o que você queria sonhava mas eu tô aqui inteiro pra você e só de pensar na possibilidade de você não mais existir já fico desesperado por favor não me deixa aqui sozinho eu tô te implorando não me ignora tudo bem não precisa falar nada comigo nem me olhar deixa que eu faço isso eu juro que não vou te incomodar mas é que eu preciso eu preciso de você acredito que você nem tenha me percebido mas eu te percebo eu te vejo eu te tenho dentro de mim por favor não vá embora você pode achar isso ridículo até é ridículo mas fazer o quê eu não sei ser outra coisa eu dependo de você eu amo você por favor não me deixe aqui não desligue o telefone eu eu desculpa estou tomando o seu tempo você é tão linda e não precisa disso eu só queira te dizer que não está sozinha eu estou aqui mas eu só queria isso mesmo que você soubesse que eu existo mesmo não me vendo agora joga esse frasco no lixo

Ela engoliu a seco aquelas palavras, aquela voz desconhecida que silenciou o mundo. O telefone desligou. Pegou o frasco. Jogou na lixeira. Hoje, mais uma vez, Ana desistiu de acabar.

Entre-corpos


Já não era inesperada toda aquela onda de desejo sobre o corpo alheio. Muito menos óbvia a vontade de mergulhar de peito aberto às suas pulsões freudianas. Óbvio não era mesmo. A cada vez que se deparava com aquele corpo em sua frente, era como se sua fome de fera aguçasse de tal forma, que não conseguia assimilar mais nada no mundo, além de sua presa. Mais intensas eram as inúmeras descargas elétricas em seu corpo e carne quando tocava aquele outro corpo. Um afago, um beijo no rosto, abraço, que fosse. Quando tocava aquele corpo transfigurava-se em uma bocarra cheia de dentes e saliva-água-na-boca. Eis que, numa noite dessas perdidas entre o ócio e o trabalho interminável, um corpo resolveu ligar para o outro.  Era uma conversa-abraço, uma conversa-toque. Uma voz contentando-se com a outra voz. Depois disso, encontraram-se os dois. Um abraço, um beijo no rosto, cumprimentos, a parte, foram ao que interessava:
-Eu preciso que você me ajude numas coisas. Tô completamente...
Cortando a frase daquele corpo:
-Claro que ajudo! Eu não estou fazendo nada.
-Ai, valeu mesmo, viu?! Sabia que poderia contar com você. [sorriram-se]
-Não dizem que amigos são pra essas coisas?
Sorriram-se, novamente, um corpo olhando para o outro. Há uma pequena pausa que perdura por uns instantes, mas que para os dois corpos soa como uma pequena eternidade. Até que um corpo disse para o outro corpo:
-Pois então, me explica o que devo fazer.
Um corpo explicou ao outro e assim passaram algumas horas. Cada corpo inclinado em seu objetivo. Entre risos, uma conversa inacabável sobre todos os assuntos ao mesmo tempo. Entediaram-se os dois corpos com o trabalho.
Quando já exaustos, às tantas da madrugada, já a base de cafés, um corpo colocou-se retesado sobre o chão, cabeça sobre uma almofada. Convidou o outro corpo a fazer o mesmo. O outro corpo fez. A conversa ficou densa, lenta, até que resolveram de modo quase telepático parar. Silêncio.
Dois corpos e um lençol. O frio, que entrava pela janela que não fora fechada por preguiça mútua, fez com que um corpo dividisse o lençol com o outro. Aproximaram-se. Mais. Era tão estranhamente esperado aquele momento, mas, ao mesmo tempo, Pairava sobre suas cabeças uma atmosfera um tanto pesada. Permaneceram os dois corpos retesados. Estáticos sobre o tapete do apartamento.
 Dentro de si, uma revolução de sentimentos e estímulos. Era como que sempre quisesse aquilo. Porém nunca houvera momento. Coragem, melhor dizendo, para tal. O corpo alheio também esperava por isso, mas não sabia. Por vezes esboçava algum gosto por aquilo e bem que provocava. É verdade.
Eram dois corpos. Um de costas pro outro. O silêncio do mundo era entrecortado pela respiração profunda dos dois. Suas costas dançavam aos tremores de suas pulsações. Simultaneamente, resolveram se virar e falar algo. Seus rostos agora se encontravam frente a frente. E permaneceram inertes. Calados. Cada um sentindo somente o quente da respiração do outro em suas têmporas. Esboçaram um meio sorriso, um entrando nos olhos do outro.  E assim ficaram por segundos. Até que, um dos corpos deixou escapar:
-Engraçado...
O outro corpo complementou:
- Engraçado e estranho.
-Obrigado.
-Obrigado? Eu não. Por vontade própria.
Depois de ouvir a resposta, sua face avermelhou de tal forma que parecia pegar fogo. Abaixou as vistas e riu-se. O outro corpo, percebendo a reação deste corpo, dispara:
-Você é tão transparente quanto água. Fica com vergonha não. Sabe que eu tô com uma vontade de...
- Você também?
-Eu também o quê?
-Você também tem vontade?
-Muita.
- E por que não disse antes?
- Ah, não sei. Talvez porque você não havia me perguntado.
Riram os dois corpos.
-E agora, o que a gente faz?
-Isso:







Nada mais tinha importância naquele dia, naquele apartamento, naquela cidade. Era um mundo novo, suspenso, etéreo, tátil. Um mundo de sentidos. Entre os dois corpos o surgimento de uma nova era. Era uma gênese dual. Os dois corpos entrelaçados sobre o tapete do apartamento fizeram o dia amanhecer, como todos os dias. Só que bem mais tarde.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Atípico

Ler ouvindo “Dois barcos”, de Los Hermanos.



Era um dia atípico. Acordara atrasado para o compromisso. Não foi. Então, decidiu ir mais cedo para o trabalho. Na cabeça as descobertas de domingo: as felicidades corriqueiras, a conversa com um amigo que gosta muito, a traição de outro amigo que o decepciona e um quase relacionamento que acabou antes mesmo de ter começado. Por isso, era um dia atípico.


Não sabe como fez passar o dia tão rapidamente. Ele, no meio da densidade do mundo e da coleção de novos problemas. Acabou sozinho com os pensamentos prolixos e sinuosos, desobedecendo a linha reta da coerência. Era ele em sua auto-montanha russa. E nessas voltas, lembrou de uma frase que o amigo disse. Não exatamente a frase ao pé da letra, como se diz. Não exatamente sobre este novo relacionamento, mas o outro remoto relacionamento:


- ...talvez pode estar escrito... esse relacionamento de vocês...talvez, no futuro, vocês voltem...


O fragmento de conversa, ao fim do dia, permanece esvoaçando por sua mente. E, por isso, pensa em uma música que aprendeu a gostar – digo da banda – porque ela gosta e porque é ela e ele - a música -, ao mesmo tempo.

Angustia-se. Sente saudade daquele passado não mais remoto. Fecha os olhos e assiste por detrás de um vidro que o separa do passado a sua própria vida a dois. Eles eram lindo juntos. Uma sintonia tão perfeitamente linda e única. O sorriso de um era a extensão da vida do outro. Mas, como uma película de filme antigo, castigado pelo tempo, a imagem foi de desgastando e ficando em tons de cinza, com falhas. Depois disso, um blackout. Ao abrir os olhos ainda no escuro de si, luta contra uma lágrima empoeirada, esquecida no canto do quarto escuro de sua memória toda machucada e sozinha. Ele não quer. Mas quer. Ele hoje é só. Sozinho com ele, só com ele, mal com ele: Ele e a lágrima abrupta. Dois barcos à deriva em um oceano gigantesco. Uma luta homérica, épica para não morrer afogado pelo mar. Luta. Perde. Não vê farol, não vê mais nada. Fez-se mar.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Voz dissonante

Antes de qualquer nomenclatura, acima de qualquer tipo de qualificação devemos ter bem compreendido que somos todos seres humanos: iguais em funções vitais, porém diferentes em características físicas e ideológicas. Somos únicos e não temos valor calculável. Portanto, não estamos à venda. Infelizmente, somos escravos [mesmo sendo abolido o regime escravista há mais de um século] do sistema capitalista, que etiqueta cada pessoa com o preço que os patrões determinam. A partir daí, você passa a ter valor para a sociedade de acordo com o poder aquisitivo que possui. Construímos assim, todos os dias, grandes muros que separam pessoas, eliminam desejos e roubam as vozes dos que não podem participar da partilha da renda. O que nada possui não comunga do mesmo banquete. Não existe como ser humano. Torna-se o problema.
Como resposta às opressões, um grito existencialista é dado em cada canto do mundo, como sinal de resistência. O grito sufocado, abafado do que não tem vez é visto como atrocidade.
Uns roubam porque precisam, outros porque é o modo mais fácil de enriquecer. Há aqueles que são vítimas de assaltos. Mas há também os que vencem suas dificuldades e conseguem alcanças os objetivos. Mas não podemos esquecer aqueles que são interrompidos no meio do caminho e perdem a vida inocentemente. E, por fim, há os que nada fazem.
E assim, de seres heterogêneos, se constitui a sociedade. Mas quem são os culpados? E inocentes? Somos todos vítimas e ao mesmo tempo assassinos. Não podemos assistir nossa própria desgraça e aplaudir no final. Também não podemos rir da nossa desgraça. É preciso movimento para manter o corpo vivo. Aquele que nada faz se torna cúmplice de um crime que ele também será a vítima. É preciso reagir. Mergulhar em águas mais profundas. Comprometer-se com a causa. Decreto, assim como o Poeta Thiago de Melo, os Estatutos do Homem:

"Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.”.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Por uma resposta.

Oi.
Começo a imaginar que escrevo e falo comigo mesmo. Por que você não me responde mais as mensagens, os telefonemas, os e-mails? Talvez eu tenha errado o endereço, o número. Mas acho que não. Não erraria por muitas vezes. É você quem não atende e não responde. De fato, não consigo entender o porquê do teu silêncio, da tua distância. Mas é que eu não gosto de desse lance de subentendido, de deixar no ar. Muito mistério... Se, pelo menos, me dissesse algo...qualquer coisa. Eu vou ficar esperando. Calado.
Um beijo.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Solidão a dois

É uma sensação bem diferente das demais já experimentadas. Sempre diferente. Ela não falava com ele há bastante tempo. Suas agendas eram um tanto divergentes. E a correria cosmopolita impedia que pensassem um no outro. Por isso, um acaba escrevendo coisas corriqueiras, a fim de encurtar a distância, como um “boa noite, meu anjo, tô com saudades. Bjossss”.
Do outro lado da tela do computador, a mensagem é recebida com um sorriso que começa no canto da boca e se espalha pelo corpo. E em resposta, ele escreve um “Boa noite pra vc Tb, minha linda. Tb to c/ saudades,rs. Bjãooo!!”
De alguma forma, os dois se fundem no mesmo desejo e vão dormir, mais leves. Ilegais.
Deitado na cama, ele escuta uma música romântica, que se torna uma trilha sonora de sua pequena novela secreta. De barriga pra cima, sem camisa, ainda de óculos e com as mãos por baixo da cabeça, sobre o travesseiro. Lembra da mensagem e pensa, como se dissesse para ela:
- Tenho vontade de te escrever. Saber como você está. Te dar um abraço, fazer carinho em você e passar os dedos entre seus cabelos. Um beijo vagaroso. Uma conversa silenciosa, daquelas que somente as almas falam. Quero ter você...
Ela, de camisola, cabelos penteados, esconde-se encolhida debaixo do edredom, de perfil. Eterniza a resposta da mensagem e ainda tem aquele mesmo sorriso nos lábios. Faz um carinho no travesseiro, como se fosse a cabeça dele e pensa:
- Tenho vontade de te ver, meu anjo. Gosto de você. Tenho vontade de saber como você é. Por que não nos encontramos ante? Seria tudo diferente...
Cada um em seu mundo particular divide a cama com uma segunda pessoa Ele, casado com uma mulher alguns anos mais nova, mas comprometida com seu trabalho, de modo responsável. Ela, casada com um homem muito ocupado e ausente. Os dois casais encontravam-se duas vezes no dia: Quando acordavam e quando iam dormir. E assim, passaram os dias: se comunicando via mensagens de celular, entre bilhetes na geladeira e recados com a empregada. Durante a noite, ela procurava preencher o vazio através do computador. Ele trancava-se no escritório para terminar os trabalhos. Diante da esposa, apresentava-se sério. Foi adquirindo ao longo do relacionamento tal postura. Ela mostrava-se para o marido de maneira firma, quase que impondo sua competência como profissional. Solitários a dois. Nunca se viram de verdade e também nunca pensaram na hipótese de um perguntar ao outro onde moravam. Conversam até as tantas. E entre uma besteira aqui e outra ali falada, entre muitas risadas e sorrisos. Ele acaba por soltar, entre uma bobeira e outra, sem ter consciência:
-“eu te amo”.
Ela emudece os dedos e fica estática. Ele lê o que acabou de escrever e não se move. Engole seco o silêncio dela. Ela, num ato brusco, derruba a caneca de vermelha, em cima da escrivaninha. Pelo chão o café fresco. Pelo corpo a mensagem liquefeita escorre por cada poro de sua pele.
Ele, nervoso, enlouquece.
- Meu Deus, o que eu fiz?! Vai até o banheiro e pára em frente ao espelho. Olha-se como quem quer uma resposta. Tira os óculos, molha o rosto. Respira fundo e, medroso, volta para frente da tela. Do outro lado, ela desperta com o café e caneca no chão. Cata os cacos da caneca e, com um pano, limpa o quarto. Põe em outra caneca, também vermelha – é um conjunto de canecas vermelhas- mais café. Volta acelerada para o computador. Encara a tela. Responde:
- Não sei como dizer. Ñ sei o que dizer. Estou nervosa...
Ele toma coragem e retribui:
-Nunca disse isso a ng, assim. Eu ñ sei o que está acontecendo cmg. Desculpe. Desculpe...
- Não!
- Não o quê?! Ele responde, quase imediatamente.
-Não se desculpe. Eu também sinto.
-Sente?
- Sinto. Mas é estranho. É melhor deixar assim, como está. Estou confusa...
Ela, tensa, bebe de uma vez todo o café. Ele não compreende o motivo do “é melhor deixar assim, como está”. – Mas por quê?! , ele devolve.
- Porque nós somos assim, corridos demais. Não daria certo. Eu trabalho tanto e você também. Além disso, somos casados. Acho melhor não darmos mais nenhum passo...
- Você sabe o quanto foi difícil pra mim, ter que dizer isso. Eu tive de matar a mim mesmo pra te escrever algo que eu não tenho dimensão, algo que não cabia em mim. Eu não posso permitir que você não me permita...
- Como assim, não te permitir?! Você me pediu permissão pra me dizer isso? Eu recebi o que você falou e, até agora estou tentando engolir isso. É maior do que eu, você entende?
- Não entendo não. Eu estou me abrindo por inteiro pra você. Você não pode fazer isso comigo. Não tem o direito!
- Direito?
Sim, direito. Vc não pode ser egoísta. Você está sendo egoísta...
- e eu não conto nessa história?! Eu também sinto...
- Então porque você não faz como eu estou fazendo?
- Porque eu não posso Não podemos. Porque eu não sei... Olha, eu vou te excluir...desculpe.
- Não! Por favor, não faça isso?! Eu não posso conviver com a possibilidade de ficar sem você, de não falar com você... por favor, não me exclua. Por favor!
Ela coça a cabeça, de modo que se descabela. Ele, do outro lado começa a aguar o estranho amor.
- eu vou te ligar. Ele escreve.
- Não. Por favor. Não vou atender.
- Me dá o seu telefone.
- Já disse que não. Pára, por favor. Eu não quero cometer o erro de me apaixonar mais ainda por você. Isso não pode dar certo. Eu sou casada! Você é casado...
- Eu já nem sei qual foi o dia em que eu beijei minha esposa. Não nos falamos, quase. Sou casado, mas não estou casado...
- Meu marido não repara em mim. Trabalha muito e só o vejo quando chego em casa e quando saio pra trabalhar. Não sentimos mais nada um pelo outro. Mas não posso fazer isso...É melhor não arriscar.
Ele, uma metralhadora, dispara:
- eu passei a minha vida inteira com medo de me expor eu sou assim mesmo e agora que tenho a possibilidade de fazer isso não vou me permitir que isso aconteça nunca havia sentido nada igual em toda minha vida eu amo você e tenho certeza disso sinto falta de você todos os dias sabe como é ter que dividir a cama com um estranha? É claro que você sabe disso e só porque somos casados perdemos o direito de sermos felizes? Não é justo isso não é justo eu quero você pra mim e me entrego por inteiro à você você me despertou e eu te despertei temos que nos dar essa oportunidade falo mais com você do que com minha própria esposa na verdade sinto estou casado com você e isso é o que importa eu sei que isso é perigoso mas temos o direito de nos permitir amar e ser felizes por favor não faça isso comigo por favor não faça isso com você não importa o que as pessoas vão dizer o que importa é que eu te desejo e que você também corresponde a esse desejo vamos viver nossas vidas de modo que possamos ser felizes de verdade eu não sou feliz eu não sei o que é isso você é a única possibilidade de eu ter felicidade se eu te deixar ir não sei o que poderá ser de mim eu fico imaginando como pode ser seu rosto sua voz sua pele construí você nos meus pensamentos e agora isso é tão real que não posso deixar que morra não posso deixar que você morra em mim como minha esposa eu não posso você não pode eu me permito por favor se permita
Ela fecha de modo desesperado o notebook, chorando, vai até a suíte. Fica trancada por um tempo. Toma uma ducha. Ele, no escritório de casa, também trancado, permanece vidrado pela tela do computador, por um tempo. Exausto, levanta e fuma um cigarro na janela.
...

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Palanque.

Estou aqui porque acho que devemos fazer alguma coisa. Eu sou um cara pobre, brasileiro, filho da rede pública de ensino. Sem patrocínio, sem dinheiro. Cheio de hematomas por causa das porradas que a sociedade me dá. Por isso, acho que devemos fazer alguma coisa porque todos estamos no mesmo barco.
Quem poderia imaginar? O filho de uma catadora de papel, negra, analfabeta e, obviamente, pobre, passou para um dos cursos mais concorridos da Universidade de Pernambuco: Biomedicina. O jovem, negro como a mãe e irmãs, herdeiro de uma história marcada por chibatas, abusos, descaso e preconceito tornou-se a exceção da regra da sociedade brasileira. O ingresso para uma universidade pública seria uma possibilidade de um futuro melhor para ele e família. Mas essa história não termina com o clichê “e viveram felizes para sempre".
No dia 6 de março fará um mês que mais um jovem foi brutalmente impedido de conquistar seus sonhos. Histórias como estas já passam por nós de forma corriqueira e banal. Desta vez o ator principal do teatro do Brasil foi Alcides do Nascimento Lins, de 22 anos, que foi morto na porta de casa, no dia 6 de fevereiro. Por engano! Alcides acabou por fazer parte das banalizadas estatísticas de jovens pobres, negros assassinados no Brasil.
Precisamos fazer alguma coisa. Somos um povo com um histórico de luta e não podemos morrer na nossa própria inércia. Eu também estou errado porque estou dentro disso. Mas quero fazer diferente. Fazer o Certo. Posso estar sendo sensacionalista, não sei mesmo. Mas eu estou há muito com essa inquietude. É decepcionante decepcionado o andamento das coisas, com o conformismo e a apatia-nossa-de-cada-dia! Precisamos fazer alguma coisa. Por nós, pelos outros, Pra vida! Pelo amor de Deus. Sabe, eu não quero acabar como o Alcides: Interrompido no meio do caminho. Mas também não quero ser a minha própria pedra no meio do meu caminho. Sou solto demais pra acabar preso dentro de um sistema que nos coloca como café-com-leite na brincadeira do mestre mandou. Nós não podemos.
Somos negros, brancos, pobres, assalariados, subalternos, subdesenvolvidos. Mendicamos por uma educação falida, para ocupar a high society. Somos todos cegos no meio do tiroteio. Moribundos. Somos os cegos de Saramago. Somos um Haiti que tem escolas de samba e Ronaldinho. Somos uma colônia mestiça, tropical e catequizada. Adestrada para dizer sim e votar nulo. Não podemos esperar levar um tiro ou alguém próximo sofrer com a violência e o descaso. Não podemos ser Cristãos de IBGE, só pra contar nas estatísticas. Quando Jesus fez pelo povo, não estava preocupado com promoção e muito menos com estatística, rótulos. Ele era ele mesmo. E por isso fez o que fez. Não podemos mais nos sustentar de um rótulo de bons cristãos que somos. Nossa gente é apática e conformada. Vive na ilusão de obras e espetáculos de noventa minutos. Ser humano transcende o material. É hora de fazer porque estamos acostumados a mendicar, a pedir e reivindicar por nossos direitos. Mas temos deveres. Temos o dever de mudar. Quando um muda já é muito, mesmo sendo muito pouco, sempre será mais um. O mundo muda com a mudança da gente. Sejamos libérrimos e não escravos da desgraça. Incomode-se com o absurdo, incomode-se com o mundo, com tudo. Até quando você vai ficar sentado em frente da TV assistindo alheio o descaso que também é pra você? Não sejamos um monte de cebolas, que você descasca e no fim não tem nada mais que isso: casca. Precisamos fazer, ser mais!


"...Muda, que quando a gente muda o mundo muda com a gente
A gente muda o mundo na mudança da mente
E quando a mente muda a gente anda pra frente
E quando a gente manda ninguém manda na gente
Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura
Na mudança de postura a gente fica mais seguro
Na mudança do presente a gente molda o futuro..."

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Uma carta.

Há tempos não escrevo uma carta. Há tempos também que não recebo uma carta. Há tempos que não vejo minhas letras e também não sei as dos outros. Há tempos que não vejo o contorno de minha alma e também o dos outros. Nunca escrevi uma carta sequer para ninguém. É bem verdade que ninguém também nunca me escreveu nada na vida. Mas é uma questão de tempo. Por sinal, o tempo é uma questão muito importante. essa chuva que cai me impede de fazer algumas coisas. Então, por isso, me deitei e acabei me encontrando pensando nessas coisa de escrever uma carta. Por isso, escrevo pra você, meu amor.

Rio de janeiro, 17 de fevereiro de 2010

Querido;

Estou tentando me virar aqui, sem você. sabe, é difícil demais pra mim. Aguentar tudo sozinho é muito difícil, mas vou conseguir. Um dia desses, arrumando o armário, achei aquela boina quadriculada que te dei de presente, lembra? Não sabia que ainda estava aqui. Lavei porque já estava quase mofando. O mais incrível é que mesmo depois de lavada, ainda ficou com o seu cheirinho. Seu quarto está limpo. Lavei o chão e troquei as roupas de cama. Aquela mancha do lençol saiu. Todas as manhãs eu abro as janelas, pro sol entrar. Às vezes, quando sinto muito a sua falta, durmo em sua cama, pra te ter mais pertinho de mim.Queria que estivesse aqui comigo. Desculpe. Não queria que fosse assim. . Mas é que você me irritava dizendo que me amava, que me queria por toda vida. E quando dei por mim, o revólver já estava nas minhas mãos. Hoje eu não bebo mais. Seu rosto era tão bonito... Rezo por você.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Etéreo.

** Ler escutando Mensagem de amor, de caetano Veloso.


Era um pouco mais. Era como se estivesse só no mundo-apartamento, com uma janela de frente para o calçadão. Era como se morasse lá, em cima do horizonte. Etéreo. Era um ar fresco e denso. Um ar que se podia sentir por entre os cachos de cabelo castanho-claros. Um ar fresco que resvalava pela e pele branca - quase avermelhada pelo sol da estação mais esperada porque era a cara de sua cidade. Porque era a cara de todos. Estava ali, ele, com seu corpo e sua mente: não pensava em nada. Acho que não era nada. Ou não.
Sim, estava ali, ele mesmo, com seu corpo, seus cachos castanho-claros, sua pele branca quase avermelhada, um vento fresco e denso, um vento resvalando e só. Ele, sozinho, à parte, era sem ninguém, sem alguém: Era ele e só. Era ele, sem o Deus. O mundo todo e ele só. Observava todo o mundo ao seu redor: cada fragmento de coisa, cada coisa, cada inação do nada em volta de si. Aspirou fundo o ar, percebendo seus pulmões, soltando-o com vagareza. Ao peito, um ritmo quase cadenciado do músculo-coração-de-carne. Se fechasse os olhos, não via nada além de um breu, que poderia ser ele, momentos antes. Mas é que agora não via nada mesmo, ao fechar os olhos. Mas sentia. Sentia na mesma cadência um fluxo, Um gosto de ferro. Um fluxo que fazia tremer suas pálpebras e incharem os dedos das mãos. Percebeu um pescoço: uma ligação. Um duto. Percebeu um sangue que não via.
Texturas diferentes, lisas, rugosas, ásperas mãos e pés lânguidos e transpirantes. Uma figura lânguida, músculos aparentes, costas. Plexo e bacia, ombros, esterno, diafragma, abdômen. Isso era um corpo. Ele era um corpo. Ele estava sendo um corpo inteiro ali, com ele mesmo: nele. Surpreendeu-se: nunca tinha sido um corpo inteiro. Quando faz um gesto, descreve uma linha no horizonte, uma trajetória no ar, que por quase um segundo se mantém e se desfaz.
Com a mesma consciência que acabara de nascer ali, ele olhou com o corpo todo, em trezentos-e-sessenta graus, o universo inteiro.
Viu uma natureza também sozinha. Uma árvore, uma amendoeira. Torta, grande, folhas verdes. Uma árvore sozinha no mundo. Um ser. Descobriu que a árvore não lhe causava afetação alguma. Nenhuma.
– Uma árvore é uma árvore e eu sou eu. Uma árvore não é nada. Eu sou eu. Uma árvore não é nada porque não poder dizer que é, mas também não pode dizer que não. Por isso não é. Eu posso, eu sou porque posso e sou. É isso.
Duas mãos, cinco dedos em cada mão. Um corpo inteiro e novo. Ele fecha os olhos e enxerga com cada dedo todo o corpo. Reconhece-se em si mesmo e sabe que está sendo ele mesmo ali.
Desce as escadas e descobre coxas, pés, joelhos. Articulação. Ele tem duas pernas e não três, como havia pensado. Ele não era um tripé há muito tempo. Desde hoje. Agora, em frente a coisa-árvore, olha-a com olhos, mãos, dedos e tórax. Descobre que no mundo há, além de seu corpo completo, inteiro, há também uma árvore. Perdoou a árvore por não poder dizer que era, que estava sendo uma árvore e só. Atravessou a avenida e chegou à areia cor de areia: ali, era ele, o mar, a areia e lá longe, a árvore. Deitou na areia e descobriu a sensibilidade das costas, braços e tudo. O universo de cima caia por sobre seu corpo todo, em um azul intenso da noite, estrelas e lua redonda. Fecha os olhos.
Alguns minutos. Ou não. Horas.
Levantou-se e andou sem rumo, em cima da areia. Tão completamente etéreo e só, tentando ver pelo corpo todo. Anda de costas para ver o horizonte indo e indo e indo...
Para. Há algo cujo corpo não tinha visto. Algo afetou sua trajetória, se traço no horizonte. Vira-se. E era um conjunto de pedaços. Uma matéria igual a ele, mas diferente. Também só. Longos cabelos e negros. Entre um e outro um abismo de silêncio separando os corpos. Alguns minutos. Ou não. Horas. Um universo parado, à espera de alguma ação. Vagando entre os astros um momento suspenso. Eram somente olhos e corpos até então. A garganta secou, a areia chupou a transpiração de seus pés lânguidos. Seu músculo-coração-de-carne aumentou, numa decadência. Ela apertava uma unha contra outra. O vento movia os cabelos e quase escondia seu rosto. Olhos castanhos. E intensos. Ele sozinho, à parte. Ela solitária e inerte. Até que ambas as carnes tocaram-se. Vinte e nove músculos gritaram. Duas línguas. Lábios e dentes. Mãos todas e tórax.
E foram os dois embora. Ele, antes sozinho e ela, solitária no universo-praia. Agora, um ensinava ao outro como ser sozinho a dois.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Você precisa saber.

Homem, Pra onde pensa que vai?
As coisas não são bem assim
Você não sabe o tempo de parar?
Voltar atrás não é desistir
Veja o que sua vida se tornou
Solidão, vazio e dor
Chega de mentir pra si
Dizendo que tudo vai bem
Tudo tá legal
Viver no caos não é natural
Pare agora com isso
Você está destruindo a si mesmo
Quando nega carinho
Quando diz não a um irmão que poderia ser você
larga essa arma
Essa guerra está fadada
A acabar com as esperanças de um mundo melhor
Discurso de tiros não faz de você um herói
Falsas promessas, politicagem, esse é o seu melhor?
Cruzar os braços diante da TV, diga, esse é o seu melhor?
Estar totalmente alheio a tudo, esse é o seu melhor?
Você precisa saber da fome, da violência
Da falta de assistência, do descaso
Do assalto a mão armada, da corrupção
Da má intenção, da crueldade
Da falta de liberdade, do aborto
Do mofo que cobre o seu corpo
Você precisa saber.
Eu não sei o que você está fazendo ou vai fazer
Mas você precisa saber.
Divino maravilhoso não está não
É bom colocar os pés no chão,
Meu irmão
Eu não sei o que você está fazendo ou vai fazer
Mas você precisa saber.

eu fico

eu fico esperando por comentários
eu fico esperando por redenção
eu fico esperando por respostas
eu fico esperando por uma luz
eu fico esperando por contatos
eu fico esperando por um tapa
eu fico esperando por vida
eu fico esperando por qualquer coisa
eu fico esperando por um sonho
eu fico esperando por um beijo
eu fico esperando por um vento
eu fico esperando por uma laranja
eu fico esperando por um estímulo
eu fico esperando por uma risada
eu fico esperando por copo dágua
eu fico esperando por um elogio
eu fico esperando por um tempo
eu fico esperando por um abraço
eu fico esperando por um carnaval
eu fico esperando por um raciocínio
eu fico esperando por um prato
eu fico esperando por um livro velho
eu fico esperando por nada
eu fico esperando por um cacho de bananas
eu fico esperando por tudo
eu fico esperando por um telefonema
eu fico esperando por um coqueiro
eu fico esperando entendimento
eu fico esperando por ninguém
eu fico esperando por um pedaço de pão
eu fico esperando por mim
eu fico esperando por todos
eu fico esperando
eufico esperando
esperando
eu fico
eu
.

EXISTE


**Recomenda-se ler ao som de Summertime, da Janis. A Joplin, sabe?


Acordou diversas vezes durante a madrugada porque o calor estava absurdo. Levantava, bebia água, se molhava na pia e voltava a dormir. Denso. Como o calor. Por fim, acordou antes do despertador tocar mas desistiu de tudo e desmaiou novamente. Recebeu um telefonema. Era Ana. Falava ininterruptamente sobre sua coleção de novos problemas e outras conversas como trabalho, teatro, grana, política, contas a pagar, fim de relacionamento e geladeira pifada: assuntos que todos gostam de falar, logo pela manhã. Sua voz-rouca-e-pouca arrrranhava a conversa que por pouco não era monólogo, se não fossem algumas poucas interrupções suas.
- Te acordei, Carlos?
- Não. Minha garganta tá meio ruim mesmo.
Decidiu deitar no chão porque não aguentava de preguiça e calor. Em frente ao ventilador que soprava um bafo mais quente do que ele mesmo, naquele momento. Uma hora e blau de conversa, até que ele decidiu que.
Levantou-se. Precisava de um banho. Nu, em frente ao espelho olhava-se como um Voyeur o próprio corpo. Narciso-através-do-espelho. Água fria pra espantar os maus agouros e fazer trincar as articulações. Escorria por sobre o corpo, despertando pra manhã. Tesão de quem acaba de acordar: Na cabeça a imagem de uma mulher gostosinha currada por ele e outro cara igualmente gostosino, os três, sem fronteiras corporais- porque era um fetiche não realizado. Na mão direita o signo da virilidade e do poder: uma revolução, a quebra de um tabu. 1960, 1970. Uma herança. Ou, quem sabe, um legado?! É, masturbação mesmo, cara.Punheta, cinco por um - Por que, nunca fez? Porra, com essa cara, até parece...Como fazem os homens-sempre-garotos, como disse Nelson, o Rodrigues, sabe? "eternos anjos pornográficos" blábláblá... Arrumou-se.
Um gosto amargo na boca como quem tivesse bebido leite azedo. Era o gosto dele mesmo. O gosto de uma madrugada quente e densa e sozinha. O mingau das almas, como disse uma vez um amigo. Então, ele era o mingau da sua própria alma. auto-antropofágico. Hum, Interessante. Escovou os dentes, na tentativa de eliminar o amargo. Até conseguiu. Substituiu o gosto de si pela menta-hortelã-não-sei-o-quê da pasta de dentes. Lembrou que era podre e cheio de bolor. Sorriu feliz e saiu da casa.
Foi ganhar a vida. Trapaceando, é claro, porque ninguém é de ferro.
Chegou no "quase" trabalho - porque aquilo que ele fazia era trabalho mas não era, ao mesmo tempo. Meio copo de café, pra amargar de vez tudo aquilo e manter acordado, quase-aguentando, com uma fatia de pão ázimo, pra se redimir - um pouco - dos pecados - muitos - e da masturbação matinal. Pão ázimo lembra Jesus Cristo, os apóstolos e aquela história toda que nos faz sedentos dalguma santidade, castidade...Re-den-ção! Bonito, né? E assim foi novamente. Pôs-se a escrever. Ao som de Sommertime, com a voz rouca, quase-igual-a dele, da Janis. A Joplin, conhece? Então. Até que gostou.E quase sonhou. Mas acabou por lembrar que não sabia como fazer aquilo...Por isso, ficou a remontar um passado já vivido, não por ele, graças aos cheiros e imagens e às sensações físicas e as da alma, sugeridas pela música, acompanhada por um cigarro de filtro vermelho.
- Ai, nostalgia de um tempo não vivido. Isso existe?
Existe.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Uma íris cansada

Como se faz , por vezes, até jocoso, tentar lembrar dalguma coisa por mim vivida. O estranho de tudo isso é que o chavão "recordar é viver" não se aplica a tal prática. Busco dentro de minhas memórias pálidas e empoeiradas, da minha vida infinda, uma lasca de lembrança qualquer que seja, justamente para não viver. Revivo o ontem na busca de encontrar um rasgo, uma rachadura, um buraquinho na parede do tempo, a fim de descobrir um possível fim para mim. Por hora, fico a imaginar a minha morte, o meu desaparecimento do mundo e de mim mesmo. Já não conto mais os dias, visto que todos e cada dia se torna uma tortura inacabavel. Não durmo, mas também não vivo. Estou num estado de permanência constante em algum lugar que não sei qual, com pessoas que não sei quem. Num tempo que não é meu. Que passa, mas não me leva. Enquanto isso eu fico aqui, vendo o tempo passar, com minhas pálidas e empoeiradas lembranças, de uma vida quem nem me pertence mais. Eu, descolado do mundo, tenho a sensação de estar sendo sustentado por uma película muito fina, quase transparente, que me mantém num mesanino de tempo, no qual há uma força que me puxa para trás e outra que me empurra para frente. Tais forças me anulam de ação qualquer e por isso orbito em mim, mas também nas páginas da história, entre astros e corpos que não posso tocar. É uma máquina do [não]tempo. Eu, estranho e só, orbito por entre os tempos que não conheço. Eu, sem tempo que me fixe, não tenho o compromisso de um dia acabar. Desprendido da história, vejo as águas da humanidade formarem ondas e destruírem conceitos. Coroações de reis, batalhas sangrentas, revoluções, os amores e o mofo das velhas ideologias. As vanguardas: Um fluxo interminável de acontecimentos e mudanças quais não participo. Brinco de fazer revolução, de coroar reis e rainhas, de amar o mofo. Ironica e contraditoriamente para passar o tempo.Ahahahahahahahahahahaha! Sou uma testemunha. Uma íris cansada. Olhos sem pálpebras.
Talvez, talvez a única solução seja eu esquecer de mim. Assassino minhas lembranças, os mortos que nelas caminham. Vou demolindo cada pedaço da minha existência, até deixar de existir. Sim. porque a morte nada mais é do que deixar de existir para sempre. Acabar para o universo. É trancar-se no vácuo. No fundo escuro do espaço vazio.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Diariamente!

Hoje eu acordei com vontade de comer um livro. Um livro não. Muitos. Histórias, teorias. Qualquer coisa pra preencher um enorme espaço vazio de atividades nulas, que costumeiramente chamamos de férias. Ode ao ócio! [??] Isso me enjoa.
No mesmo ínterim, quero assistir uma peça do Caio Fernando e ler um livro seu de teatro - emprestado - e ir ao cinema e pintar e fazer um curso no Parque Laje porque lá é lindo e me parece bem do jeito que eu gosto: livre! Quero escrever num caderno novo algumas coisas e fazer uma peça e dar um beijo na boca e ir à praia e morar na água porque o calor está comendo o mundo e trabalhar e beber um copo d'água e falar outra língua e cantar e poder pagar todas as minhas contas e ficar o dia todo no ar-condicionado e sorrir e sair pra um milhão de lugares e fazer outros milhões de amigos e comprar um par de chinelos amarelos e viajar e ficar nu e raspar a cabeça e voar de asa delta e fazer trilha e aparender a tocar violão e andar descalço e publicar um livro e ser famoso e ter três filhos e chamar a primeira de Nina e a segunda de Flor e o terceiro de Tito e comprar uma casa bonita e ter um cachorro e uma mulher pra chamar de minha e uma biblioteca e não ter mais gastrite e não precisar de antidepressivos e ter muitos sonhos bonitinhos e chamar os amigos pra uma festinha no fim de semana e sair correndo par qualquer lugar. Ou seja, Hoje eu acordei com uma vontade de comer a vida inteira, pra ficar vivo eternamente. Pelo menos por hoje.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

...
"Meu pensamento se sente passarinho no ninho do corpo dela. Passarinho que, para descrever nossos encontros e minhas lembranças, talvez seja capaz. Minhas asas batem e permaneço imóvel. E isso me faz perceber que, por mais que eu pense estar mudado, eu ainda sou o mesmo. Mesmos amores, mesma essência."

A Santa Missa

A Santa Misssa. Seus olhos, de ambos, conheceram-se antes de tudo, mas não perceberam simultaneamente. Os dele viram-na primeiro. Os dela talvez. Talvez. Talvez não com o mesmo vigor. A Santa Misssa, o domingo, tornou-se, então, o dia mais esperado. Era o dia dos olhos receberem a graça divina, além da alma. Como de costume, trocávamos somente olhares. Mas um dia: a epifania. Toda a graça dos céus, toda luz do mundo invadiu-me o peito e dissipou-se por todo meu corpo. Ela deu-me um sorriso. Tímido. Mas deu-me um sorriso. O único. O mais lindo. Indiscutivelmente. Aquele sorriso valeu-me mais que mil orações, mil homilias. O Evangelho do dia para mim foi o Evangelho do Santo Sorriso, todos os capítulos, todos os versículos. Glória a Vós, Senhor.
Já na fila para receber o corpo de Cristo, junto às devotas e outros fiéis, estava eu, sempre a olhar sua figura mais que divina. Ela passou por mim e ouvi o coral de anjos regozijando com toda glória. O Ministro da Eucaristia:

- Corpo de Cristo. E no mesmo instante, ela deu-me um “bom dia”. Fiquei tão confuso que disse:

- Amém, para ela.
- Bom dia, para a hóstia.

Que o Senhor Jesus Cristo não me ouça os pensamentos e tampouco leia tais escritos. Mas, daquele momento em diante, comunguei o “bom dia” como o Seu próprio.

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!

+++

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

2mil&10!

Chegada de ano novo sempre vem com um gosto bom, uma expectativa, uma energia que nos toma de todo. Esquadrinhamos novos projetos, sonhos e até assumimos novas e diferentes posturas. Quem já disse para si e para os outros “2010 será diferente!”? E é realmente essa a chave da questão. Ser diferente. O “ser diferente” é dar a si mesmo mais uma oportunidade de tentar, de fazer, de ser. O ano começa sem medo, sem ressentimentos, sem peso. Leve como um sonho de criança, puro e colorido. O ano novo. Uma nova vida. Caminhos, gentes, promessas, enfim, um sem número de adereços para enfeitar a trajetória que dura 365 dias.
Que possamos, apesar dos pesares, das disputas de poder, do clientelismo, da falácia dos homens corrompidos e da descrença dos pessimistas, fazer um 2010 mais humano, em relação aos que passaram. Porque idealizar projetos, sonhar, anotar suas metas e pendurá-las em um mural é muito mais fácil e cômodo. Sonhar não dói e projetos idealizados nunca contam com imprevistos. A vida também e feita de revés. Que além de sonhar, possamos nos dar a tal oportunidade de agir, de trabalhar com empenho, para que a abstração de um simples sonho se torne uma realização concreta.
A hora de tirar nossos projetos da lista inerte de metas para este ano que se inicia é agora, e como diz o poeta Fabrício Carpinejar: – Que me seja permitido desaprender os limites”.

domingo, 3 de janeiro de 2010

uma essência muito boa

Repassei as páginas do ano que passou. Vi que havia deixado pra trás, em baixo de um monte de poeira, uma essência muito boa. Uma coisa cheia de matizes reluzentes e sons de floresta, gestos carnavalescos, um perfil tropical. Havia deixado de lado, embaixo de um monte de poeira, uma essência. A minha tropicalidade. retomo o que é meu. Volto a ser Eu. Saio pra rua,com a minha velha roupa colorida, na linguagem do alunte, pros pingos da chuva me molhar!



"Vou mostrando como sou
E vou sendo como posso,
Jogando meu corpo no mundo,
Andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros
Eu deixo e recebo um tanto
E passo aos olhos nus
Ou vestidos de lunetas,
Passado, presente,
Participo sendo o mistério do planeta
O tríplice mistério do "stop"
Que eu passo por e sendo ele
No que fica em cada um,
No que sigo o meu caminho
E no ar que fez e assistiu
Abra um parênteses, não esqueça
Que independente disso
Eu não passo de um malandro,
De um moleque do brasil
Que peço e dou esmolas,
Mas ando e penso sempre com mais de um,
Por isso ninguém vê minha sacola"

everythin' means nothin'

É.
Depois de tantas sensações quais não foram descritas com o verbo, depois de tantos momentos que não foram registrados pela máquina de escrever e sequer pela tinta de uma caneta - mas sim pelos olhos, pele, carne - ele, que já havia, pelo menos pensado ter superado o retrato vivo do ontem, recebe a notícia que não poderia chegar: Ela está nos braços de outro. Outros braços. Que não são os seus.De imediato se riu e achou bom. Ela merecia. Era o que Carlos achava do peito pra fora.


Chega em casa. Vê a foto daquela que não é mais sua - porque nunca o foi, visto que todos nascem livres, mas isso não vem ao caso. O caso é que ela não era mais sua e ponto. Escreve pra ela. Mas escreve dando felicitações de ano novo e outras formalidades mais. Não era isso. Carlos acabou por trocar o papel pelo peito e escrevera tudo o que gostaria de dizê-la dentro dele. Tudo pra não aguar o amor alheio, que podeira ser o seu...

Tem uma sensação estranha pelo corpo. Uma corrente de ar que passa pela garganta e todo o resto do corpo. Senta-se no terraço e olha para o céu que está avermelhado. Não lembra de ter visto lua. Madrugada.

" everythin' means nothin' if i ain't got you..."

Ele, uma música ao fundo e o céu vermelho de meia noite. Os três dentro de um mundo enorme e vazio. Carlos sabia o que estava acontecendo. Só não queria entender...