quinta-feira, 1 de julho de 2010

dissonante

[Diálogos diversos interrompidos. Ao passar do tempo, todos os diálogos são ouvidos simultaneamente]
...qualquer uma! Desde que bem gelada...
...ahahahahahahahaahahahahahahahahahah...
...Lembra daquela morenaça que te falei?...
...é, o trânsito essa hora..
...ah, uma vez, só pra experimentar...
... cara, acho que não...
...foi uma situação bem, assim...
...mas é claro que eu...
...não, aí ele me disse que estava...
...ai, menina, tu não sabe o que aconteceu ontem...
...lembra daquela vez que...
...você fuma?...
...sem colarinho...
...meteu três, três gols no teu time...
[Pausa. Desliga-se. Pensativo. Bebe e pensa. Olha e fala]
Engraçado. Com você não. Com outras pessoas. Descobri uma coisa hoje. Na verdade, já havia descoberto, mas não reconhecido. Não consigo encarar  as pessoas, nos olhos. Meus olhos são duas esferas fugidias. Dois planetas fora de órbita. Incessante no movimento. Olho tudo ao meu redor, mas não olho nada também. Sei lá, vai ver é o medo de me descobrirem e arrancarem do meu corpo cínico um eu que nem mesmo conheço. Mas me reconheço, sabe?
[pausa]
Os olhos são o ponto fraco do homem. Por mais rígido que seja o homem, são nos olhos onde se concentram todas as fraquezas, defeitos.A gente se esconde por detrás dos olhos. Úmidos e frágeis, os olhos são o que são. Meu corpo todo forja uma maneira de ser o que a sociedade espera. E é nesta espera que fica represada todas as minhas  fragilidades. Todo o meu câncer. Eu por inteiro.  [micro-pausa] Eu sou um câncer em mim. [pausa seguida de silêncio pesado]
Tem vezes que olho. Encaro. Mas visto outros olhos. Não vejo, Não me vejo. Na maioria das vezes não sou eu em mim. Mas, tudo bem. Quem realmente é? Tá, não precisa responder. É retórica. E retórica é essa vida, mesmo. Oi? Não prestei atenção no que você falou. Desculpa. Ah, sim, quero mais um copo.
[coloca os óculos escuros, enquanto o outro age com estranheza]
É melhor. Vou colocar os óculos escuros. Sei que são duas e oito da manhã, mas é por precaução. Não quero te assustar com meus tumores radioativos. Chega de leitura radiográfica da alma. Pronto, bloqueei a minha passagem. Mas, então, qual a sua música favorita?