domingo, 29 de maio de 2011

Alguém disse que o mundo não era tão chato



Alguém disse que o mundo não era tão chato. Alguém disse que era bom viver.
Sentiu-se subversivo por um momento. Mas voltou atrás. O que significa, então, ser subversivo, se a vida é uma só? Desistiu do rótulo e mergulhou com todo o corpo naquilo que achou conveniente. Não coerente. Estava feliz por descobrir estas coisas. As mesmas coisas já descobertas há tanto tempo, por tanta gente. Tudo sempre esteve ali. Ele é que não via porque insistia em  andar no escuro.
Pega o papel e ensaia escrever. Escrever uma carta, como se aquela fosse a primeira vez em que executaria tal ação. Pela primeira vez sentiu-se tão livre para escrever que paralisou a mão direita, porque era destro. Ficou imóvel, com a ponta do lápis no papel. A mão esperando o comando do corpo ficou ali. Ele não queria desperdiçar este momento, que poderia ser o único. Em sua mente, um turbilhão de palavras emboladas, todas famintas para escapar daquele corpo de homem. As palavras não pertencem ao concreto. São feitas para estar no ar. Etéreas.
Decidiu por não decidir pensar.

 - De repente, pode ser a única oportunidade de se ser livre para escrever, pensar, falar e ser livre...

Então, de modo muito humano, e irracional, escreveu na superfície aviltante do papel branco:

 - O que você tem? Me diz.  Passei dois dias com o cheiro do teu corpo no meu. Minhas mãos eram teu corpo. Minha cabeça, minha boca. Minha vontade, que era você. A vontade de te ter. De ser todo seu. O que você tem? Uma semana foi o bastante pra me tirar completamente da órbita, da linha da razão. Você me suspendeu no ar. Tirou toda a gravidade que me deixava fixo no chão. Sua voz. Sua voz come meus tímpanos tão docemente que me desfaço em desejo e vontade e tudo... Como eu queria que nada disso tivesse acontecido...  só pra acontecer tudo. Novamente. Acho que estou ficando louco. Peço que não leve a mal. Peço que não me leve a mal. Peço que me leve.

Respirou tão fundo, que acabou por consumir todo ar do planeta. Sentiu-se exausto por ter expulsado todo aquele verbo dentro de si, represado.
Acendeu um beck. Pegou um copo de cerveja. Sentou-se relaxado na cadeira antiga, na varanda, de frente pra qualquer lugar: porque o lugar era o que menos importava naquele momento de suspensão. Ele estava em seu não-lugar. Com nenhuma incerteza. Era ele e todo aquele verbo – desejo - liberdade no ar, dançando qual fumaça densa e lenta do beck. Dançando qual corpo imaterial num duo com o outro corpo. Completamente livres.


Notas sobre um dia depois de tantos outros


Notas sobre um dia depois de tantos outros


Aos ouvidos a cantilena que desperta e mastiga todarquitetura corporal, além de encurralar o espírito no canto do quartescuro da subjetividade:
 “Existirmos: a que será que se destina?...”
É o tipo de pergunta que não se é para responder. Mas é. É o tipo de pergunta que é para ser buscada. Vivida. Ele pensa, com o ser quase inteiramente mergulhado em sua lama particular. Em sua frente o caderno qual anota toda e qualquer sinapse. Nele  escreve para um outro corpo. Mas também fala de si-para-si:
 - Eu tenho o potencial para arrastar tudo que estiver ao meu entorno, assim como uma tromba d’água. Sou uma catástrofe desmedida. Envolvo todo mundo nas minhas tempestades e, por onde passo, não deixo pedra-sobre-pedra. Hoje, quem chove é o tempo. Permiti a natureza chover. É uma água que limpa. Que lava. Purifica. Mas, isento-me desta purificação. Derramo por sobre o rosto uma chuva ácida, contaminada. Cheia de agrotóxico. Descarrego uma chuva salobra, sem oxigênio.
Silencia o espírito gritante por um tempo. Ouve os pingos da chuva. Percebe-se. Retoma o diálogo consigo:
 - Estou aqui, sentado, vendo o tempo chover. Olho. Nada, além disso. Sob meu nariz a piscina que hoje não tem o azul de Amaralina, mas a cor de um pântano. Hoje, está vazio, quase. Estou sozinho, esperando pelo corpo que já foi embora. Tentando ver nos poucos corpos que vêm portadentro o corpo qual espero e espero e espero e espero.
Hoje, estou existindo de modo diferente. É um existir quase sutil, se não fosse pela angústia, pelos resquícios de choro-tempestade, e pela lembrança do momento em que me despi da pele e revelei-me a hecatombe com formas humanóides. Não posso dizer se estou feliz. Não posso. Sinto somente um vento que percorre os espaços entre meus órgãos e ossos.
Não sei o que fazer. Estou parado e angustiado por não estar em movimento. Estou com fome e com fome vou continuar porque não tenho o que comer. Somente este tempo, que não mata a minha fome. Eu precisava falar com alguém. Cheguei e você já não estava mais. Sofro. As coisas estão densas e tensas. O deus resolveu dormir até mais tarde e não veio comigo. Saí de casa e não disse pronde ia. Sem bilhetes, recados. Nada. Deixei tudo. As cores do meu corpo, o sorriso. A pouca coerência que me foi dada. Só trouxe a dor das costas, os olhos pesados; as marcas do rosto e a vontade de chorar um pouco mais. Estou completo, então. Acho que não. Eu não sei. Eu nunca sei. Mais uma vez eu tenho medo e paro na beira do abismo. Penso. Repenso. Fico parado.
É muito ruim e difícil morrer sozinho, parado. Na calmaria. O horóscopo disse que entrarei em uma fase muito boa. O sol iluminará a minha lua e, por isso, terei um “levante”. Sim. Estou vendo o “levante”: de toda a confusão que já sou e não me basto. Eu queria que estivesse aqui, comigo. Eu devia ter chegado mais cedo. Meu corpo hoje e ontem e anteontem se moldou para teu abraço forte, que se parece com o meu. O meu abraço. Eu também quero abraçar o corpo que ontem eu machuquei e fiz sangrar...

Ele fez sangrar o corpo e depois, sangrou-se também. Não agüentou e abriu as comportas da represa. Caiu e rasgou-se nos cacos de si mesmo. Rasgou os olhos, pés e rompeu ligamentos e tendões. Cheio de fraturas e escoriações, seguiu para dentro de si. E, em sua via-sacra particular, caiu pela terceira vez. Sem que ninguém o visse.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Mal Secreto

** Ler escutando "Mal secreto", na voz da Gal.

[ http://www.4shared.com/audio/c5bNKOza/03_Mal_Secreto.htm ]


Tudo começou como um acaso desses. Conheceu o homem durante uma viagem que fez a negócios. Fora as estressantes e tensas reuniões com acionistas e representantes internacionais, trocou conversas tímidas durante a estrada e fez-se agradável e linda. Um sorriso de homem que sabe o que quer para uma mulher não é coisa corriqueira. Sentaram-se um ao lado do outro. E fluidas foram as conversas – mais. 

- Nossa, você passa uma segurança. Sabe mesmo o que pretende. Poucos homens são assim. E o mais interessantes disso tudo é que ainda é agradável, inteligente e tem bom humor...

- Sei bem o que quero e não desisto. Mas me vejo bem em você. Ouvi tua conversa no telefone e fiquei pensando nisso. Talvez tenha sido isso. Eu ter me aproximado...

- Pode ser.

Conversaram horas sobre trabalho, vida, amores, gostos e desgostos. Música, teatro, dança, verso, bebidas, sonhos, segredos, morte. E neste ambiente só deles, o cosmo favoreceu. A lua orbitou na casa dos seus signos, de uma só vez. Até que o silêncio se instaura. Longo. O silêncio das bocas. Os olhos se permitiram percorrer toda a alma de um e de outro. Tudo no silêncio do mundo. Os únicos que perturbavam a calmaria do universo eram seus corações desritmados. Até que o silêncio é quebrado pelo homem:

- Antes de morrermos, posso fazer uma coisa?

Ana responde com uma pergunta, mas sabe o que ele quer fazer.

- O quê?

Silenciosamente. Um beijo.

 Um toque, um quase-amor. E ali ficaram durante toda a viagem. Como se aquele contato fosse de outros tempos. Ela que não é de se entregar, doou-se toda a ele. Ele dedicou-se àquele momento, que se suspendeu no ar tenso da viagem. Eram somente eles. Eram dois clandestinos escondidos, um dentro do outro, debaixo do grosso cobertor.
- Seus olhos são bonitos – diz Ana, de modo bem espontâneo e atento ao homem que era dela, naquele recorte de tempo-não-tempo, suspenso no ar. Ele devolveu um sorriso.
Tudo permaneceu indo e lindo. A viagem findou-se. Cada qual seguiu seus descaminhos e prometeram se encontrar. Ela estava bem. Passou o dia com o cheiro do corpo do homem em seu corpo, como se ele mesmo estivesse ali, de todo. Ele, não se sabe nada não.  Só que seu sorriso era lindo e seguro e feliz.

Alguns dias se passaram. Ana ainda vivia aquela situação tão atípica. Resolveu procurar pelo homem na internet.Não tinha o costume de fazer tal coisa. Na verdade, não tinha o costume de ter costume nenhum. Não é do tipo que se entrega. E brigando consigo, venceu-se o orgulho e despiu-se de toda armadura contra o mundo. Desejou com toda sua vida ser daquele homem e foi em parte nos dias anteriores e pensamentos. Todos os dias subseqüentes. Ana Achou o homem, seu homem. Achou mais do que gostaria. Ele era homem de outra mulher. Felizes, as fotografias esmurraram seus olhos, seu peito, seu corpo e sua alma toda. Um engodo, um nojo, um desgosto uma tempestade. Com uma mulher de escorpião com ascendente em leão não se brinca. É puro veneno. E, diante das fotografias diz com uma voz que vem das entranhas:

- Não. Não posso ficar com raiva. Mas tô. Com ódio. A vontade é de gritar um grito de morte, de desgraça, de vomitar gafanhotos, todas as sete pragas do Egito. Todas, todas elas. Em cima de você... Eu sei. Não posso ficar com raiva... Aliás, posso e posso e devo e quero e vou e estou e estou sendo e sou. Raiva. Do átomo às pontas dos cabelos. Com pude?!

Ela se ri de uma forma nunca antes experimentada e desesperada e, entre esse riso grotesco, não sabe se chora, se odeia e se se odeia e grita. Diante do espelho seu rosto desmancha junto com a maquiagem preta dos olhos. Passa as mãos amargas e odiosas por sobre os cabelos desgrenhados e escorre-as pelo rosto, borrando a boca vermelha. E ela inteira chora e grita e geme e se atira e atira palavras gritantes aos quatro cantos do mundo-quarto.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHH!
   Filho da puta filho da puta te odeio te amo e não amo e amo e odeio canalha viado viado filho da puta ignorante mentiroso lindo idiota você me enganou farsante tratante gostoso moleque mentiroso eu sou uma burra bura bura burra muito burra e burra eu te mato e mato e me mato e morro e volto e  te odeio e odeio e amo e odeio e amo eu não quero e não posso e posso e te quero morto e vivo te detesto sai do meu corpo da minha pele da minha boca da minha cabeça  AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHH!!!!

Arranca a roupa. Entra no banheiro nua. Tranca a porta para que ninguém veja que ela é um mal. Prefere ser um mal secreto. Para os outros. Para si. Abre o chuveiro. A luz apagada é proposital, para não ver sua alma corrosiva. Ali, Ana radioativa e explosiva, ferve a água que cai em seu corpo-ódio. O universo gira ao contrário por conta de todo bolo de rancor e praga e corrosão deste corpo de mulher de escorpião. Escorre toda pelo Box.

 Naquela noite, Ana morreu, para acordar no dia seguinte. Se o sol tiver coragem de nascer.