segunda-feira, 29 de março de 2010

Atípico

Ler ouvindo “Dois barcos”, de Los Hermanos.



Era um dia atípico. Acordara atrasado para o compromisso. Não foi. Então, decidiu ir mais cedo para o trabalho. Na cabeça as descobertas de domingo: as felicidades corriqueiras, a conversa com um amigo que gosta muito, a traição de outro amigo que o decepciona e um quase relacionamento que acabou antes mesmo de ter começado. Por isso, era um dia atípico.


Não sabe como fez passar o dia tão rapidamente. Ele, no meio da densidade do mundo e da coleção de novos problemas. Acabou sozinho com os pensamentos prolixos e sinuosos, desobedecendo a linha reta da coerência. Era ele em sua auto-montanha russa. E nessas voltas, lembrou de uma frase que o amigo disse. Não exatamente a frase ao pé da letra, como se diz. Não exatamente sobre este novo relacionamento, mas o outro remoto relacionamento:


- ...talvez pode estar escrito... esse relacionamento de vocês...talvez, no futuro, vocês voltem...


O fragmento de conversa, ao fim do dia, permanece esvoaçando por sua mente. E, por isso, pensa em uma música que aprendeu a gostar – digo da banda – porque ela gosta e porque é ela e ele - a música -, ao mesmo tempo.

Angustia-se. Sente saudade daquele passado não mais remoto. Fecha os olhos e assiste por detrás de um vidro que o separa do passado a sua própria vida a dois. Eles eram lindo juntos. Uma sintonia tão perfeitamente linda e única. O sorriso de um era a extensão da vida do outro. Mas, como uma película de filme antigo, castigado pelo tempo, a imagem foi de desgastando e ficando em tons de cinza, com falhas. Depois disso, um blackout. Ao abrir os olhos ainda no escuro de si, luta contra uma lágrima empoeirada, esquecida no canto do quarto escuro de sua memória toda machucada e sozinha. Ele não quer. Mas quer. Ele hoje é só. Sozinho com ele, só com ele, mal com ele: Ele e a lágrima abrupta. Dois barcos à deriva em um oceano gigantesco. Uma luta homérica, épica para não morrer afogado pelo mar. Luta. Perde. Não vê farol, não vê mais nada. Fez-se mar.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Voz dissonante

Antes de qualquer nomenclatura, acima de qualquer tipo de qualificação devemos ter bem compreendido que somos todos seres humanos: iguais em funções vitais, porém diferentes em características físicas e ideológicas. Somos únicos e não temos valor calculável. Portanto, não estamos à venda. Infelizmente, somos escravos [mesmo sendo abolido o regime escravista há mais de um século] do sistema capitalista, que etiqueta cada pessoa com o preço que os patrões determinam. A partir daí, você passa a ter valor para a sociedade de acordo com o poder aquisitivo que possui. Construímos assim, todos os dias, grandes muros que separam pessoas, eliminam desejos e roubam as vozes dos que não podem participar da partilha da renda. O que nada possui não comunga do mesmo banquete. Não existe como ser humano. Torna-se o problema.
Como resposta às opressões, um grito existencialista é dado em cada canto do mundo, como sinal de resistência. O grito sufocado, abafado do que não tem vez é visto como atrocidade.
Uns roubam porque precisam, outros porque é o modo mais fácil de enriquecer. Há aqueles que são vítimas de assaltos. Mas há também os que vencem suas dificuldades e conseguem alcanças os objetivos. Mas não podemos esquecer aqueles que são interrompidos no meio do caminho e perdem a vida inocentemente. E, por fim, há os que nada fazem.
E assim, de seres heterogêneos, se constitui a sociedade. Mas quem são os culpados? E inocentes? Somos todos vítimas e ao mesmo tempo assassinos. Não podemos assistir nossa própria desgraça e aplaudir no final. Também não podemos rir da nossa desgraça. É preciso movimento para manter o corpo vivo. Aquele que nada faz se torna cúmplice de um crime que ele também será a vítima. É preciso reagir. Mergulhar em águas mais profundas. Comprometer-se com a causa. Decreto, assim como o Poeta Thiago de Melo, os Estatutos do Homem:

"Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.”.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Por uma resposta.

Oi.
Começo a imaginar que escrevo e falo comigo mesmo. Por que você não me responde mais as mensagens, os telefonemas, os e-mails? Talvez eu tenha errado o endereço, o número. Mas acho que não. Não erraria por muitas vezes. É você quem não atende e não responde. De fato, não consigo entender o porquê do teu silêncio, da tua distância. Mas é que eu não gosto de desse lance de subentendido, de deixar no ar. Muito mistério... Se, pelo menos, me dissesse algo...qualquer coisa. Eu vou ficar esperando. Calado.
Um beijo.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Solidão a dois

É uma sensação bem diferente das demais já experimentadas. Sempre diferente. Ela não falava com ele há bastante tempo. Suas agendas eram um tanto divergentes. E a correria cosmopolita impedia que pensassem um no outro. Por isso, um acaba escrevendo coisas corriqueiras, a fim de encurtar a distância, como um “boa noite, meu anjo, tô com saudades. Bjossss”.
Do outro lado da tela do computador, a mensagem é recebida com um sorriso que começa no canto da boca e se espalha pelo corpo. E em resposta, ele escreve um “Boa noite pra vc Tb, minha linda. Tb to c/ saudades,rs. Bjãooo!!”
De alguma forma, os dois se fundem no mesmo desejo e vão dormir, mais leves. Ilegais.
Deitado na cama, ele escuta uma música romântica, que se torna uma trilha sonora de sua pequena novela secreta. De barriga pra cima, sem camisa, ainda de óculos e com as mãos por baixo da cabeça, sobre o travesseiro. Lembra da mensagem e pensa, como se dissesse para ela:
- Tenho vontade de te escrever. Saber como você está. Te dar um abraço, fazer carinho em você e passar os dedos entre seus cabelos. Um beijo vagaroso. Uma conversa silenciosa, daquelas que somente as almas falam. Quero ter você...
Ela, de camisola, cabelos penteados, esconde-se encolhida debaixo do edredom, de perfil. Eterniza a resposta da mensagem e ainda tem aquele mesmo sorriso nos lábios. Faz um carinho no travesseiro, como se fosse a cabeça dele e pensa:
- Tenho vontade de te ver, meu anjo. Gosto de você. Tenho vontade de saber como você é. Por que não nos encontramos ante? Seria tudo diferente...
Cada um em seu mundo particular divide a cama com uma segunda pessoa Ele, casado com uma mulher alguns anos mais nova, mas comprometida com seu trabalho, de modo responsável. Ela, casada com um homem muito ocupado e ausente. Os dois casais encontravam-se duas vezes no dia: Quando acordavam e quando iam dormir. E assim, passaram os dias: se comunicando via mensagens de celular, entre bilhetes na geladeira e recados com a empregada. Durante a noite, ela procurava preencher o vazio através do computador. Ele trancava-se no escritório para terminar os trabalhos. Diante da esposa, apresentava-se sério. Foi adquirindo ao longo do relacionamento tal postura. Ela mostrava-se para o marido de maneira firma, quase que impondo sua competência como profissional. Solitários a dois. Nunca se viram de verdade e também nunca pensaram na hipótese de um perguntar ao outro onde moravam. Conversam até as tantas. E entre uma besteira aqui e outra ali falada, entre muitas risadas e sorrisos. Ele acaba por soltar, entre uma bobeira e outra, sem ter consciência:
-“eu te amo”.
Ela emudece os dedos e fica estática. Ele lê o que acabou de escrever e não se move. Engole seco o silêncio dela. Ela, num ato brusco, derruba a caneca de vermelha, em cima da escrivaninha. Pelo chão o café fresco. Pelo corpo a mensagem liquefeita escorre por cada poro de sua pele.
Ele, nervoso, enlouquece.
- Meu Deus, o que eu fiz?! Vai até o banheiro e pára em frente ao espelho. Olha-se como quem quer uma resposta. Tira os óculos, molha o rosto. Respira fundo e, medroso, volta para frente da tela. Do outro lado, ela desperta com o café e caneca no chão. Cata os cacos da caneca e, com um pano, limpa o quarto. Põe em outra caneca, também vermelha – é um conjunto de canecas vermelhas- mais café. Volta acelerada para o computador. Encara a tela. Responde:
- Não sei como dizer. Ñ sei o que dizer. Estou nervosa...
Ele toma coragem e retribui:
-Nunca disse isso a ng, assim. Eu ñ sei o que está acontecendo cmg. Desculpe. Desculpe...
- Não!
- Não o quê?! Ele responde, quase imediatamente.
-Não se desculpe. Eu também sinto.
-Sente?
- Sinto. Mas é estranho. É melhor deixar assim, como está. Estou confusa...
Ela, tensa, bebe de uma vez todo o café. Ele não compreende o motivo do “é melhor deixar assim, como está”. – Mas por quê?! , ele devolve.
- Porque nós somos assim, corridos demais. Não daria certo. Eu trabalho tanto e você também. Além disso, somos casados. Acho melhor não darmos mais nenhum passo...
- Você sabe o quanto foi difícil pra mim, ter que dizer isso. Eu tive de matar a mim mesmo pra te escrever algo que eu não tenho dimensão, algo que não cabia em mim. Eu não posso permitir que você não me permita...
- Como assim, não te permitir?! Você me pediu permissão pra me dizer isso? Eu recebi o que você falou e, até agora estou tentando engolir isso. É maior do que eu, você entende?
- Não entendo não. Eu estou me abrindo por inteiro pra você. Você não pode fazer isso comigo. Não tem o direito!
- Direito?
Sim, direito. Vc não pode ser egoísta. Você está sendo egoísta...
- e eu não conto nessa história?! Eu também sinto...
- Então porque você não faz como eu estou fazendo?
- Porque eu não posso Não podemos. Porque eu não sei... Olha, eu vou te excluir...desculpe.
- Não! Por favor, não faça isso?! Eu não posso conviver com a possibilidade de ficar sem você, de não falar com você... por favor, não me exclua. Por favor!
Ela coça a cabeça, de modo que se descabela. Ele, do outro lado começa a aguar o estranho amor.
- eu vou te ligar. Ele escreve.
- Não. Por favor. Não vou atender.
- Me dá o seu telefone.
- Já disse que não. Pára, por favor. Eu não quero cometer o erro de me apaixonar mais ainda por você. Isso não pode dar certo. Eu sou casada! Você é casado...
- Eu já nem sei qual foi o dia em que eu beijei minha esposa. Não nos falamos, quase. Sou casado, mas não estou casado...
- Meu marido não repara em mim. Trabalha muito e só o vejo quando chego em casa e quando saio pra trabalhar. Não sentimos mais nada um pelo outro. Mas não posso fazer isso...É melhor não arriscar.
Ele, uma metralhadora, dispara:
- eu passei a minha vida inteira com medo de me expor eu sou assim mesmo e agora que tenho a possibilidade de fazer isso não vou me permitir que isso aconteça nunca havia sentido nada igual em toda minha vida eu amo você e tenho certeza disso sinto falta de você todos os dias sabe como é ter que dividir a cama com um estranha? É claro que você sabe disso e só porque somos casados perdemos o direito de sermos felizes? Não é justo isso não é justo eu quero você pra mim e me entrego por inteiro à você você me despertou e eu te despertei temos que nos dar essa oportunidade falo mais com você do que com minha própria esposa na verdade sinto estou casado com você e isso é o que importa eu sei que isso é perigoso mas temos o direito de nos permitir amar e ser felizes por favor não faça isso comigo por favor não faça isso com você não importa o que as pessoas vão dizer o que importa é que eu te desejo e que você também corresponde a esse desejo vamos viver nossas vidas de modo que possamos ser felizes de verdade eu não sou feliz eu não sei o que é isso você é a única possibilidade de eu ter felicidade se eu te deixar ir não sei o que poderá ser de mim eu fico imaginando como pode ser seu rosto sua voz sua pele construí você nos meus pensamentos e agora isso é tão real que não posso deixar que morra não posso deixar que você morra em mim como minha esposa eu não posso você não pode eu me permito por favor se permita
Ela fecha de modo desesperado o notebook, chorando, vai até a suíte. Fica trancada por um tempo. Toma uma ducha. Ele, no escritório de casa, também trancado, permanece vidrado pela tela do computador, por um tempo. Exausto, levanta e fuma um cigarro na janela.
...