quarta-feira, 26 de maio de 2010

Conto de fadas


Antes, era como um momento leve, suspenso no ar. Muito leve e suave. Era um quase transbordamento. Era uma brisa leve no rosto, um carinho na cabeça, dedos alisando os cabelos. Antes era um quentinho bom, um cheiro de pele macia. Era um sorriso espontâneo. Era uma vontade realizada e outra vontade e outra realização. Era assim, só que bem mais.
Hoje é indiferente. É um momento denso, tenso, pesado. É um momento bruto e rascante. É um frio da madrugada, que corta a pele. Um soco no estômago, mãos esganando o pescoço. Hoje é um deserto, um cheiro forte de mofo. Um quarto vazio. Uma casa suja. Hoje é um dia esquecido. Um par de olheiras, um rosto acabado em frente ao espelho. É uma vontade não realizada. Um filho abortado. É um membro amputado. Hoje é uma caixa de antidepressivo. Dois comprimidos de calmante. Um dia inteiro dormindo. Um talho de navalha em cada pulso. Um grito seco, um choro abafado. Uma alma engasgada. Um peito afogado. Uma voz calada. Um monstro radioativo. O apocalipse segundo João. O revés do conto de fadas. Hoje, ela é uma mulher abandonada.