terça-feira, 5 de julho de 2016

Dentro da boca da noite

(clique no nome da música)


Eram corpos agitados. Ao som da música. Quase um cenário tribal, onde sacudiam braços, cabeça, quadris.

O rapaz chega, e fura a bolha do ambiente: agora é parte dele. Passa por entre os corpos vibráteis, suados. Olha ao redor. E lá, em meio a turba, surgem um par de olhos. Como o gato de Alice: Grandes, vivos, tremeluzentes, misteriosos. Mal sabia o rapaz que aqueles olhos, tempo depois, o mastigariam por completo, dentro da boca da noite.
Aqueles olhos eram como um alçapão. Armadilha perfeita para capturar animais curiosos.
Em meio aos movimentos dos corpos outros, se esbarram, trocam sorrisos (um sorriso que surge por entre a barba densa): Um menino escondido embaixo da rusticidade da barba. Primeiro os olhos, amendoados, de anjo barroco. Depois, o sorriso, limpo. A elegância quase silenciosa daquele homem deslizava com a leveza dos dias que se iniciam: um feixe de luz pálida que atravessa a cortina e perfura o breu do quarto que dorme o corpo. O rapaz, que tem olhos de ressaca, encharca o corpo do homem. Assim como as ondas de um mar revolto, percorre agitado, denso de sal que, se não estiver atento, pode afogar.

Um copo.
Dois.
Outros tantos.

Conversas sobre a vida, signos, gostos, desgostos, amigos em comum... O bastante para um querer ser íntimo do outro.
Aquele homem invadiu a cabeça do rapaz e conseguiu bagunçar o que já era uma zona. Deixou o avesso do avesso que ele já era. Tem dias, muitos deles, que o rapaz morre de saudades daqueles olhos. Se deita em seu mar e fica imaginando milhões de momentos, possibilidades. Passava dias pensando em como mostrar algo, qualquer coisa, só para ter por perto aquele homem, falando, existindo...

Aguardava ansioso, em águas revoltas, pela hora de encontrar o homem. Vê-lo estava se tornando quase um ritual. Uma epifania. Assim se passaram outros dias, outras festas, outras danças. E aqueles dois, que eram mais de mil, se afinaram tanto, que não conseguiam mais disfarçar. Eram quase Gêmeos no querer. E, um dia desses, o homem, cujos olhos são como os do gato da Alice, olhos de anjo barroco, homem que se esconde na rudeza da espessa barba de uma negrura brilhosa, tragou o rapaz dos olhos de ressaca. Engoliu-o com a boca da noite, com seu hálito quente, seu gosto de rua.

Nunca mais se ouviu falar dele. Há quem diga que o rapaz e o homem dividem o mesmo corpo (i)material. Há quem diga que sua presença foi desintegrada com a presença daquele homem, para algum dia, atualizar-se. Vai saber...

A única coisa de que se tem certeza é que nas noites das ruas vazias da cidade, ainda se pode sentir o perfume de um e outro, misturados à maresia dos olhos de ressaca do rapaz, a vagar, com uma elegância quase silenciosa do corpo do homem com olhos qual gato da Alice, pelo vento quente da boca da noite fria.

Eu

eu só gostaria de ter a dignidade de ser um Eu.

Dias desnecessários. Noites desgraçadas.

...

Cinco meses para acabar o ano. Sete meses corridos – meu corpo se debate qual epilético. 

Minha cabeça enterrada na bagunça do armário. Outros membros misturados nas caixas de livros, gavetas cheias de coisas amontoadas. Dias desnecessários. Noites desgraçadas. Em claro, meus sonhos fazem morada no fundo das olheiras que rasgam meu rosto. E os fracassos de cada dia, distendem os fracos músculos que me restam. 

Mais uma vez. Todos os dias. Eu atrasei. Novamente.

Mais uma vez. Todos os dias. Eu atrasei. Novamente.

Perdi o compromisso. Mais um de tantos outros.
Tem sido assim. Sempre. Não sei o que está ocorrendo. Eu me perco no tempo e perco o tempo. Eu não tenho o tempo. Isso dói. Dói, mesmo. Como se a vida ou o que há nela, ou eu, mesmo, não quisesse a minha chegada em lugar algum. E me vejo sempre assim: indo. Atrasado. Fora do tempo. Com destino cancelado. Diluído. Me excluindo.

Quando eu acho que estou controlando o tempo e me controlando no tempo, o relógio avança com pernas maiores do que a minha capacidade de raciocínio.

Estou aqui, em meio ao caminho, que não é o meio dele. Porque o meio, mesmo, está longe... aí, os que esperam, desistem; Os portões se fecham; vai-se embora todo o dia, para chegar outro igual, com a mesma questão... isso tem esgotado s minhas forças, aniquilando minhas vontades. Desintegrando minha existência.

Quero um horizonte para partir. Poder chegar. Mas não consigo nunca. Ultimamente, meu horizonte tem sido o nada. Nada mais. E eu, que ando tão rápido... tenho percebido que corro para não chegar.
E que, ao menos, eu tenha a decência de pedir desculpas... se bem que eu poderia pedi-la antes, mesmo, de chegar ao destino não alcançado. Antes, mesmo, de não encontrar quem já desistiu de me esperar.

Melhor que pedir desculpas seria não aceitar os convites que não poderei estar – todos eles. Que ninguém mais me convide para ir, chegar, encontrar. Somente para não estar. Convidar-me a me retirar, a não chegar. Convidar-me ao não-convite. Talvez, este eu cumpra e chegue no horário.


Mais uma vez. Todos os dias. Eu atrasei. Novamente.