domingo, 30 de outubro de 2011

Número par. Um e outro. Os dois.

Os dois se falavam sempre. Amigos em comum, assuntos em comum, desejos, caminhos quase divergentes. Gosto igual pela vida e questões do ser. Chegaram a discordar de alguns assuntos. A fazer parte do imaginário um do outro. Houve uma aparição de um para o outro em público e um cumprimento simples. Os olhos de um percorriam o corpo do outro. Tudo sem que o outro visse, soubesse. Um dia desses combinaram de se ver. Uma noite em que a soma é número 2. Número par. Um e outro. Os dois.

Conversaram por horas. Pedaços de vida partilhada. Um interesse em descobrir e se descobrir no outro. Depois de um longo tempo, o corpo de peixes com ascendente aquário diz:

- Gostei de conhecer esta pessoa que está falando agora... Já posso dizer que te conheço. Não todo. Mas conheço.

- Eu quis acreditar em algo que nem tinha dimensão, pelo fato de nunca ter experimentado, me permitido experimentar: o entregar-se.

Acho que, por conta disso, acho não, tenho certeza de que foi por conta disso que eu caminhei pensando nisso, de desprendimento, de ser livre, que não é bem liberdade. Mas um desapegar-se. E, quando me vi imerso nesta (im)possibilidade, me reconheci inteiro. E vi pela primeira vez que eu era capaz de me entregar. Desesperei. De felicidade, dor, medo, tudo. É horrível. Mas é uma delícia. Hoje eu sei muito mais de mim e sou muito mais feliz também. Hoje eu sei quem é aquele homem que aparece no espelho.

Os dois ali, sentados, de frente para o mar engolido pela boca da noite, olharam-se. Um beijo aconteceu. O mundo permaneceu com seu mesmo movimento. Eles dois ensaiaram um novo.

Aquele corpo de sagitário com ascendente também aquário voltou pra casa com os pés cheios de areia, com o peito cheio de fogo e a boca com um sorriso cheio.

: todo existência.

Depois de tanto tempo. Carlos era outro: novo. Já não sentia aquela coisa toda que fazia uma tempestade avassaladora em seu peito de homem. Aquele amor todo, Nina, já não era mais tão ameaçador. Com o tempo, Carlos soube abrir as mãos e permitir a dor voar para longe. Hoje, sabe o valor de se perder e de estar perdido, para se achar. E se perder, novamente. Redescobriu o sabor das cores e o odor de uma nova paixão. Os sorrisos têm cores de dias lindos.

Aos ouvidos aquela música instrumental, do filme que lhe trouxe, novamente, a sensibilidade do corpo e a leveza da alma. Guarda com esmero as cenas em que Amelie se move para buscar a si mesma, em um mundo onde há um, dois, e muito mais matizes. Onde há um ser humano que é o seu amor, onde há a possibilidade de se estar bem, fazendo bem ao outro.

Carlos, hoje, é Amelie Poulain. Com os cinco sentidos, todo colorido e sem medo de si. Hoje, Carlos é ele mesmo, sem desistência ou resistência: todo existência.

O espectro das coisas

Em um dia desses, em que o sol se esquece de se levantar, Carlos acordou e percebeu o mundo um tanto nublado. O tempo. Não gosta de dias nublados porque não corresponde à sua natureza solar e explosiva. O dia também estava diferente. Foi até a janela da sala. Olhou a rua quase tomada pela neblina. Abriu a janela e sentiu o vento gelado perpassar pelo seu corpo e cortinas e invadir a casa. Estava descalço, sem camisa, de cueca. Lembrou-se de Nina (ela gostava de dias nublados). Não se importou e permaneceu ali, com todo seu corpo, de frente para todo aquele mundo.

- Me vem a sua imagem em meus pensamentos e, estranhamente, me vem a sensação de que a lembrança é o todo seu que me ficou. Como se você tivesse morrido e eu aqui, vivo, a perceber que estou a lembrar de você. É um doer contido, inevitável, uma dor quase já confortada. Te vejo tão distante que não consigo tocar a ideia de teu ser em mim. É um espaço. Um vácuo... Sabe? É como visitar um lugar, uma sala, por exemplo, uma sala onde você esteve, onde ocorreu uma festa, um momento feliz. Depois de um tempo, você retorna ao espaço, à sala, e ela está completamente vazia. Você olha o espaço e vê, consegue ver a cena da festa, as pessoas. Escuta as conversas, a música... Os lugares onde cada coisa permanecia. O espectro das coisas. A lembrança é um espectro que flutua no espaço vazio do passado desbotado pela luz do presente...

E agora, agora só ausência... Você é a ausência que preenche meu espaço. Que preenche com seus todos nãos. Com suas todas faltas.

A distância é tão ruim quanto a possibilidade

(Apaga a luz. deita-se na cama com o caderno e lápis. Antes de dormir diz para si, como uma oração)

- Que me seja permitido, ao menos por hoje, a impossibilidade de sonhar com você...

(Escreve o que disse no papel. Um pouco mais além. apaga as últimas frases. Quase pensa que irá funcionar.)

...

sábado, 8 de outubro de 2011

Saldo de uma quase-vida

Eu deixei os meu pelos crescerem.
Eu aprendi a ser eu mesmo.
Eu me reconheci no espelho.
Aprendi a amar e a receber, principalmente.
Aprendi como se dói uma dor..
Aprendi a falar o que sinto. (descobri que falo contigo, mesmo estando sozinho. Prolongo sua presença. Você não vai embora, nunca, da minha cabeça.)
Reconheci o medo de perder aquilo que nunca tive.
Soube admirar, do canto, o teu movimento.
(Eu te olhava enquanto dormia...)
Entendi o que é um abraço. Um sorriso. Um olhar.
Descobri o gozo e o desgosto.
Sei o que significa uma mentira.
Eu encharquei com choro e morri com a luz apagada.
Aprendi a voar sem ter asas.
Soube perceber no meu rosto o riso frouxo, ao ouvir uma voz.
aprendi a ser um, porém dois.
Descobri o andar de mão dada.(e a andar só comigo também.)
Me deixei ser invadido pelo verão em pleno inverno.
Nos fins de tarde eu chovia.
Consegui não desistir.
Descobri que fui testado. Por todo o tempo.
Não desisti de sonhar enquanto doía meu estômago.
Não desisti de ser eu na primeira tentativa.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

um sorriso de qualquer cor

Ele, mesmo com toda fama, com toda banca, com toda pompa, toda certeza, toda beleza, com toda festa, com toda reza, com todo nexo, com todo verbo, com todo sexo, com todo ele, sentia algo diferente em seu universo particular. Era como se ele estivesse dendum ônibus. E do fundo, pelo vidro, visse imóvel a figura humana sumir por entre o vazio da estrada, até ser engolida pelo infinito. Era uma sensação: um estado diferente. Era como uma fotografia amassada nas mãos e um buraco do presente em diante. O amanhã imprevisto, sem agenda. Era mesmo uma viagem a um lugar qual nem tem dimensão. Lhe foi comprada a passagem. Ele foi. Ele se-foi.

Esperando um sorriso de qualquer cor.

Dando um sorriso com toda cor.


domingo, 7 de agosto de 2011

O meu amor não é egoísta

Depois da espera. Um beijabraço. Um assassinato da saudade. Um reencontro de si no outro. A afinação do mundo.


De si-para-si disse, que na verdade era para o outro:


- Estive pensando hoje: como é bom deitar-se na cama e ver o brilho da lua nos olhos de alguém. Melhor ainda é acordar e ter o sol ao seu lado!


E enquanto os dois corpo dormiam abraçados, o sol entrava pelas frestas da janela branca, percorrendo as linhas sinuosas de suas pernas, cinturas e braços. enquanto ele dormia abraçado com aquele corpo que lhe é tão apraz, sonhava. Sonhava com aquele corpo. Era uma presença que tomava todos os espaços.Fora e dentro. O sol gritando para levantarem os dois daquela cama que os prendia. Era uma vontade infinita de permanecer naquele espaço em que um complementava o outro. Uma preguiça do mundo pasteurizado e impessoal. Juntos, reinventam  todo universo. Muda nomes e cores. Tudo.


E o riso fez-se frouxo e escorreu por todo aquele corpo ensolarado e leve e livre. Livre! O peso da saudade se foi, dissipou-se no ar da noite. Foi como um mergulho no mar, que revitaliza. Foi como acordar tarde. Só que bem mais tarde...


Levantaram e foram. Cada qual para seu destino, naquele dia que nasceu, não com um, mas com  três sóis. Os seus e o do mundo. Não se sabia qual dos três brilhava mais... 


Depois daquele dia, no mesmo dia, dormiu. Dormiu só com a lembrança e com as marcas das mãos e pernas e boca e alma daquele corpo, em seu corpo imaterial. Lembrou como era bom o amor. Lembrou também que, antes de se fazer com o outro corpo todo eclipse, ouviu  de um certo alguém que o amor é egoísta. 


- Como pode ser o amor egoísta?!- pensou. O amor é, antes de tudo, liberdade. É pássaro que não se pode pegar com as mãos. Porque se pegarmos, ele não voa, ele não canta. Ele morre. O meu amor não é egoísta. O meu amor é meu e do todo mundo. Para todo o mundo.


Apagou a luz e,enfim, dormiu. Leve como nunca havia sido. E de modo místico e amoroso, sonhou com ele, com aquele corpo, que sonhava com o seu. Abriu os olhos surpreso. Sorriu e percebeu, mais uma vez,como era bom o amor que só eles entendem, o amor deles. Lembrou que era bom viver.


 "Mas deve haver algum jeito exato de contar essa história que começa e não sei se termina ou continua assim:
Sonhei que você sonhava comigo. Ou foi o contrário? Seja como for, pouco importa: não me desperte, por favor, não te desperto."





E, continuando os dois a sonhar aquele sonho bom, os passarinhos avuaram e tornaram todo horizonte não mais distante.





segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Poema – não – poema [Sintaxe]

Boca voz verso
em mim atroz
Deságua
Foz
maré cheia- ressaca
engole o mundo
engasga palavra
descabida
vida que se tem arredia
vontade do absurdo
momento
insano de fazer poesia a carne
crua que se mantém viva a alma
errante
passos confusos
pensamentos infindos
problemas não
matemáticos
da vida que é minha por
excelência. Na adição
de subtração dos
valores
fra – ci -
o -
na -
dos
decomponho-me
nas escolhas que não tem raiz
exata
para encontrar
a sintaxe que este
poema – não – poema
está longe de
ter.


 

Será?


Será você um pássaro ou um avião?
Será você um bandido ou um herói?
Será você isto ou aquilo?
Será você uma música ou uma dança?
Será você oito ou oitenta?
Será você um doce engano ou um sonho bom?
Será você um fantasma ou a fada madrinha?
Será você o príncipe encantado, ou apenas uma página de um livro plano?
Será você meu espelho ou o antirreflexo?
Será você ou eu?





Sobre a saudade...


 "Estava pensando uma forma de não ser, nem saudade, nem lembrança. Uma forma de não ficar de maneira nenhuma.
Estava pensando uma forma de não ter saudade, não ter lembrança.
O que seria então?"
 [clara anastácia] 




Às vezes, penso que não gostaria mais de de ser brasileiro. Alguém disse que a palavra saudade só existe pra nós. Se é verdade, eu não sei. Só sei que sinto a palavra que conheço. Cada sílaba. Não sei. Mas, poderia ter nascido chinês...

A saudade tem textura. a palavra arranha tudo, quando roça nas vísceras da gente, de modo silencioso. É linha com cerol... Mas é que, por vezes, saber identificar o que se sente é um tanto diferente. É exato. Direto demais. É ter o diagnóstico da doença na tua mão. Sentir algo e não saber o que é, também é diferente. Mas a gente toma algum remédio qualquer, tipo dorflex, que todo mundo jura servir pra tudo, e tá bom. Ah, já não sei mais de nada.... A saudade é o revés do ter... A saudade pelo que não temos nos presenteia com os espaços vazios deixados pelas coisas, sem mesmo terem existido pra nós e em nós. É um querer não saciado. É um vento por entre nosso gesto de abraço em coisa alguma...A saudade dói. Mas alimenta a fome dos quereres!

sábado, 30 de julho de 2011

Escarlate

A: - Sabe, no fundo eu sou um sentimental.

B: - Isso é Chico Buarque.

A: - É. Mas quando eu falo, é meu. Por isso digo, sabe, no fundo eu sou um sentimental...

B: - E por que você está dizendo isso agora?

A: - Porque nunca disse pro mundo. Nem pra mim. Então, digo pra você. Porque também é uma forma de dizer pra mim.

B: - Me diz. Agora eu sou eu e você. Ao mesmo tempo.

A: - Não sei se a vontade de falar e falar e falar vai suprir o quanto quero me abrir à você, a mim e ao mundo. A vontade que me dá é de rasgar a capa do peito e despejar tudo sobre as paredes desse quarto, sobre essa cama, sobre o chão. Por sobre toda essa casa. Em você... As coisas que quero dizer não cabem todas na boca. Preciso falar com o corpo todo.

B: - Eu te recebo. Vem.

e,ao ouvir isso, aquele corpo-voz fez-se todo líquido e despejou-se inteiro por sobre o outro corpo, pelos cômodos da casa. Escorreu como as águas do bonfim pelas escadas. Transbordou salas e corredores. Maremoteou-se tsunamizado. Agora, de tudo existente fez-se vermelho. Era ele perceptível ao mundo, com seu brilho escarlate. As palavras que não cabiam à boca formaram correntes marítmas e banharam os corpos que naquele quarto estavam: vermelhos, os dois ficaram a boiar.





Um. Porém dois.

Porque é você. Porque sou eu.


..., e, com o peito vermelho retinto, escreve manchado, na folha:


 - Eu escrevo. E quando você escreve o que eu escrevo, e leio,parece que está escrevendo pra mim. Parece-me que o que disse, eu não disse. Quando tudo dito e escrito saíram de sua boca e mão. Será talvez porque era o que você queria dizer e escrever, e não eu? Não sei dizer. Mais nada. Porque tudo o que eu disser será dito por você e não por mim. Não digo. Porque até o silêncio sai de você e não de mim.
Digo-não-digo. Falo/Me calo. E continuo a dizer. Por suas mãos e boca. Porque são minhas. Porque é você. Porque sou eu.

Ridiculamente interessante

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Conversa entre dois. Entre um.


A: - [silêncio]


B: - [silêncio]

A: - É...

B: - [silêncio]

A: - [silêncio]

B: - [silêncio]

A: - [silêncio]

B: - [silêncio]

A: - [silêncio]


B: - Acho que é isso.

A: - [silêncio]

B: - [silêncio]

A: - [silêncio]

B: - [silêncio]

A: - ...te amo.

B: - E nesse momento eu sinto um arrepio dentro. Meus olhos transbordam. É a vontade de dizer com a alma que também correspondo ao que me dizes. Sinto que a boca não é mais capaz de dizer com a mesma precisão uma frase tão pequena em estrutura, mas que imensa em dimensão. Te amo com tudo que tenho e existo. Todo.
Mas não me basto por isso.

A: - [silêncio]

B: - [silêncio]

A: - Não tenha medo de ser você por minha causa. Não se aprisione. Não se contenha. Seja livre e feliz. Se algo fugir do controle...

B: - E se [você] fugir?

A: - Prometo te avisar.

B: - O que fazer além do aviso?

A: - [silêncio]

B: - [silêncio]

A - B: - [silêncio]

AB: - [silêncio]

...







Não quero te ter

Não quero te ver. 
Fecho o álbum de fotografias. Apago seu número da agenda. deleto seus e-mails.
Não quero te ter.
Escondo com maquiagem as marcas de tuas mãos e da tua boca em meu corpo. E, por quase meio segundo eu te esqueço. A não ser quando fecho os olhos e te encontro todo em meus pensamentos.


Eu não sou o que você gostaria que eu fosse. Eu não caibo nos seus planos. Eu não sou aquela que vai te dar três filhos lindos e cuidar do seu cachorro. Não sou aquela que vai dividir contigo o sonho que você não vai realizar. Eu não te peço isso.Não sou uma boneca plástica. Sou mulher-carne. Eu  ofereço. Eu me ofereço. Portanto, não me dê como troco a sua indiferença. Me odeie, me deixe com raiva. Me use. Minta pra mim. Minta! Mas não me anule com a sutileza do vazio de um corpo  morto. Não faça do meu corpo um objeto ignoto. Eu estou aqui. Você me vê. Eu sei.


Você pode ser sutil.

Mas não imperceptível.




E eu te vejo, 
                                         sim.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sinto-me

Sinto-me. em um estado diferente. Entre sólido e liquefeito. Num estado de malemolência, de flexibilidade elástica. Sinto-me sinuoso em movimento Sou um quadril brasileiro. Coluna vertebral de gato vira-lata. transbordo-me. facilito-me. Sinto minha presença: em mim. No espaço. Por todos os espaços. Fluido, perpasso as superfíceis e mergulho fundo no interior do mundo. No interior das cabeças. No interior dos corpos. O que será, que será que está por vir? É o que virá. Um novo tempo onde eu existo todo. de modo supra-corporal, extra-sensível. Está por vir o que virá. E virá.

domingo, 5 de junho de 2011

véu

Você pode ser sutil.

Mas não imperceptível.




Eu te vejo, 
                                         sim.

Vampira



Depois de mais um dia, pararam todos, na verdade, alguns poucos, num bar, para comemorar ou mesmo tramar ou afogar a vida que se tinha. E lá engoliram copos de cerveja gelada, assim como o tempo. Fim de noite – ou o início dela – estavam todos. Ele e ela. Conversando e revelando alguns de seus segredos. Estavam se revelando um ao outro. Ele já tinha visto aquele corpo de mulher antes: já havia percebido suas curvas e sugestões de um segredo, ou um assunto, não tocado em roda aberta. Chegou a dizê-la, certa vez, que ela parecia agressiva, de beleza. Ela era uma mulher e se bastava na apresentação.
Trocados segredos, dividiram o mesmo espaço por afinidades e por, de algum modo, estarem ali afinados. Era outro assunto: outro propósito e outro lugar.
Entre a conversa boa e os copos sucessivos de cerveja, ela, qual gato carente, alisava seu corpo quente no corpo dele. E ele correspondia àquele ato. Imaginou aquela mulher-gato dentro de sua cabeça profana. Ela já o tinha feito anos-luz.
A vontade comia suas carnes bêbadas, assim como aquela diaba mordia seu ombro e beijava seu pescoço, a cada abraço dado. Ela estava domesticando aquele corpo de homem-aberto -no –espaço. Ele correspondia à domesticação de modo sutil. A bandida já tinha a quem dominar. O outro homem estava ali, seco. A vampira já havia chupado todo o seu sangue. Ele seria o próximo. Ela armou a cama para este homem deitar e servir-lhe de banquete. Ele, todo alimento, estava ali, à espera da dentada que o consumiria.

- Você está maluca. Perdeu a noção?! Olha quanta gente aqui.

- E qual o problema? Se eu sou maluca, não tenho noção. Sou toda pulsão. Gente. Essa gente não vê nada além. Todos bêbados, como nós. A diferença é que nós vemos. Eles, não. Essa gente é comum, conformada. Catequizada. Nós não fomos catequizados, gato. E eu não quero nada além do que você já imaginou... Ou pensa que eu não entrei na tua cabeça de homem e vasculhei todos os seus pensamentos? Eu percorri por cada beco imundo e escuro da tua cabeça, vi todos os seus desesperos, dúvidas e desejos. Fazendo um juízo de valoração, você, no mercado, vale a mesma coisa que eu valho: nada.

O homem ficou abismado com a certeza das palavras daquela mulher. Porque era verdade. Estava inerme, quase completamente entregue.

- ...e ele? Você não vai fazer isso. Ele está aqui e isso é sacanagem. O cara é gente boa e gosto dele...

- Eu também, gato. Gosto dele. Mas isso pra mim não é impedimento. Nem tabu. Ai, vocês, homens. São muito regrados. Depois dizem que não entendem as mulheres. Somos muito mais simples de entender do que vocês.
 - Pára com isso. Você é uma bandida, sabia? Eu quero, quero dizer, não posso. Não devo.

O espírito cristão daquele homem já estava corrompido antes mesmo d’ele nascer. Mas não sabia disso. A mulher disfarçou e arrastou o homem para uma parte quase sem luz da rua. Jogou suas costas retas contra-parede.

- E agora?!

O homem, sem saída aparente, respirou fundo e

- olha isso é uma loucura não é justo eu sei você é linda mas isso não pode acontecer principalmente porque não quero causar danos à ninguém o que os outros vão pensar você está maluca não isso não é legal se ele não existisse isso é outra coisa precisamos pensar nisso  não tem nada a ver eu acho eu acho que não rola não pode rolar isso é loucura eles perceberam ai, meu deus você não tem noção mesmo pára de me tocar tira a mão de mim não podemos fazer isso pára eu não tenho esse direito nós não podem...
Os anjos todos perderam suas asas e caíram como pacotes pesados por sobre o chão da Terra. Os santos do homem-cristão foram decapitados e suas cabeças santas rolaram ladeira abaixo. Suas costas envergaram e seus pêlos todos eriçaram qual gato em perigo. Ali, ele foi devorado. Ela o deu um beijo na boca. E ele nela. A mulher agarrou o corpo da sua presa e chupou sua língua, para que o homem ficasse sem palavra alguma. Percorreu com as setenta e sete mãos todo o  homem, de fora à dentro. Sua língua trilhava caminhos pela extensão daquele corpo. Com uma das mãos, pegou-lhe pelos cabelos, puxou sua cabeça para o lado. Como uma vampira, mordeu-lhe o pescoço. Respirava quente no buraco negro de seu ouvido.  E, num esforço, ele era somente um corpo sendo devorado e correspondendo a cada uma das setenta e sete mãos daquela mulher. Estava entregue. Presente. Pulsante.  Ereto.  Ele também era todo desejo: um desejo proibido. Eram puro sexo.  
Quando soltou a boca e o corpo daquela carcaça de homem, ele, paralisado, ficou a olhar, vidrado nela.
Depois de ter cumprido seu propósito, aquele corpo apocalíptico se riu inteiro para o corpo estático do homem. Explodiu em uma gargalhada diabólica. E saiu de den’da escuridão, com a cabeleira negra e revolta para o lado. O sexo aceso, suas cadeiras num requebro desumano, ela passa pelas cabeças de santos espalhadas pela rua, entre anjos caídos. Volta para a conversa de bar, cínica, como se nada tivesse ocorrido. Enche o copo de cerveja. Bebe. Abraça aquele outro homem domesticado e sugado. Dá-lhe um beijo na testa, piedosa, como quem o abençoa. Entre os corpos bêbados, se ri, como uma inocente.
: a noite continuou e ninguém percebeu nada.