sexta-feira, 30 de abril de 2010

Inquietude


 - "O que me faz mudar de ideia? "A inquietude.
"O que me faz ser assim...[?"] são os outros. Os outros do mundo. Os outros dentro de mim. Tem muita gente aqui.[bate com a ponta do dedo indicador na cabeça]
"O que me faz ficar aqui? " Ahahahahahahahahahahahaha! – Todos eles! [aponta para as  outras pessoas] É por isso que brinco de ser. É por isso que eu sou um ator. Mas isso não me basta. Brincar de ser não é ser verdadeiramente. Então, ando por aí, me mutilando a aparência, o pensamento. Sufocando algumas vontades, libertando outras pessoas de dentro de mim, estuprando a ingenuidade e a pureza-nossa-de-cada-dia. Ando por aí me jogando no mundo, aviltando meus princípios, reinventando uma maneira cínica de estar vivo. De sobre-sair nessa massa densa que é o mundo.
Quero ser perceptível até aos olhos dos cegos. Quero caber no universo - meu corpo não é o meu número. Minha língua é maior do que a minha boca e as palavras não aguentam dentro dela. Sou maior do que eu mesmo.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Sozinho

 "Alô. No momento não posso atender. Deixe seu recado após o sinal..."


 - Carlos, Carlos, você está aí? É Nina. Tem um mês, quase, que cheguei ao Brasil e você sequer me ligou...O que aconteceu? fala comigo, por favor. Me liga. Beijo.

***

 Depois de algum tempo, acostumei-me com a ausência da Nina. experimentei um sentimento que, no fundo, é até bom.Descobri que além de estar sozinho, estou comigo. Foi por isso que acabei passando um tempo em Angra. Nessa época do ano, agosto, não tem muita gente em veraneio, até porque é inverno. Só moradores, o mar e mais nada.Fiquei instalado numa casa antiga, que minha família comprou quando ainda eu era bem pequeno...

terça-feira, 13 de abril de 2010

Estranho

Acordou. Como todos os dias faz. Não por querer. Mas porque a vida exige que você acorde: exige que você levante da cama.
Tudo lhe parecia tão confuso. Não sabia mesmo se fazia parte daquele lugar. Naquele dia, ele acordou de um jeito diferente. Como não fazia todos os dias...
Acordou com um nó, não sei. Uma vontade de chorar. Uma tristeza que não sabia de onde vinha e porquê vinha. Levantou o tronco da cama e se pôs sentado. Nu, com o lençol branco por cima do sexo. Sentou curvo, como se fosse ele “O Pensador”, de Rodin.Tentou descobrir, sem sucesso, a causa de tanta tristeza. Do jeito que estava foi. Pôs-se em frente ao espelho grande que havia no quarto. Gostava de espelhos. Mas sentiu vergonha e assombro, naquele dia, de ver tanta estranheza. E ficou ali, sem muito se mover, olhando, olhando, como quem quisesse descobrir mais de si. Mas é que não conseguia.Então, fechou os olhos e tentou olhar para si, por dentro. Não via nada. Via o nada. Engoliu-se a seco. E quando abriu os olhos: chorou.
Era um silêncio maior do que ele. Intoleravelmente maior do que ele. Ali, naquele quarto de apartamento, ele brincava de construir um futuro para si, de construir uma identidade, um rótulo. Um quarto de um futuro graduado em - o quê mesmo? - ah, sim, Medicina. A Medicina: "Arte e ciência de curar e prevenir as doenças.". "A mais nobre das profissões", pensava até então. Ter a habilidade de curar doenças e salvar vidas, por assim dizer, era como se ele fosse o próprio Deus. Mas era um deus antropomorfo, bem pintado. Um deus de gesso. Um deus que se se é quebrado esfarela e só se tem o oco. Então, ele era um deus morto.
Sentou-se de fronte ao espelho e chorava consigo mesmo, talvez de medo, talvez de vergonha. Talvez porque era ele mesmo. Ou não. Pode ser que não fosse ele mesmo. Pode ser que ele fosse todaquela nomenclatura de futuro-doutor-na-família. Mas a nomenclatura - descobriu ele - a nomenclatura que era de gesso. E o gesso quebrou, virou pó e o oco era a sua personificação.
Confuso, repetiu para aquela figura estranha do outro lado do espelho que, por incrível que parecesse, era ele mesmo:
_ Eu sou Caio Albertini, tenho 25 anos. Estudo medicina. Quero ser médico e...eu não sou isso que estou vendo. Eu não isso, eu não sou. Não. Eu não isso. Eu não sou isso. Eu não isso. Eu não isso. Eu não isso. Não. Eu não sou. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou isso. Eu sou horrivelmente isso.
Tomou banho. Vestiu-se. Comeu algo e saiu.
Entrou no mundo que, até então, jurava não fazer parte. No meio de tanta gente ansiosa para atravessar ficou. Comungando da mesma ansiedade, esperando o sinal vermelho, cor que gostava. Sinal vermelho. Foi atravessado com os outros corpos apressados e engravatados.
Procurou um amigo. Mais velho. Médico.
- Cara, estou doente. Você precisa me receitar alguma coisa. Me examina. Me encaminha pra qualquer coisa. Você precisa fazer alguma coisa comigo. Eu estou doente.
O amigo examinou. - Pressão arterial 12 por 8, normal. Respira. Solta. Batimentos normais. Muco, respiração, coloração das gengivas, íris. Tudo normal. Você não tem nada.
- Não é possível...
- Sim, é possível. Tão possível que você está sem nada. Está limpo.
Caio não acreditou. Saiu do consultório, deixando no ar aquele encontro pra tomar uma cervejinha, mas que nunca ocorreria. - Vamos marcar uma cervejinha qualquer dia desse, caio? Só pra esfriar a cabeça.
- vamos sim! Te ligo. Um abraço, cara!
- Não é possível. Não é possível...tem alguma coisa errada. Eu sou a coisa errada. Eu sou o meu erro. É isso!
Caio não foi à aula, como também não ligou pra namorada e muito menos quis qualquer outra coisa, além de.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Telefone

- alô.

- Não precisa falar nada é que eu não quero ficar sozinho sempre detestei essa ideia de ficar sozinho eu queria que você não fosse embora que você não me deixasse eu sei que não sou o que você queria sonhava mas eu tô aqui inteiro pra você e só de pensar na possibilidade de você não mais existir já fico desesperado por favor não me deixa aqui sozinho eu tô te implorando não me ignora tudo bem não precisa falar nada comigo nem me olhar deixa que eu faço isso eu juro que não vou te incomodar mas é que eu preciso eu preciso de você acredito que você nem tenha me percebido mas eu te percebo eu te vejo eu te tenho dentro de mim por favor não vá embora você pode achar isso ridículo até é ridículo mas fazer o quê eu não sei ser outra coisa eu dependo de você eu amo você por favor não me deixe aqui não desligue o telefone eu eu desculpa estou tomando o seu tempo você é tão linda e não precisa disso eu só queira te dizer que não está sozinha eu estou aqui mas eu só queria isso mesmo que você soubesse que eu existo mesmo não me vendo agora joga esse frasco no lixo

Ela engoliu a seco aquelas palavras, aquela voz desconhecida que silenciou o mundo. O telefone desligou. Pegou o frasco. Jogou na lixeira. Hoje, mais uma vez, Ana desistiu de acabar.

Entre-corpos


Já não era inesperada toda aquela onda de desejo sobre o corpo alheio. Muito menos óbvia a vontade de mergulhar de peito aberto às suas pulsões freudianas. Óbvio não era mesmo. A cada vez que se deparava com aquele corpo em sua frente, era como se sua fome de fera aguçasse de tal forma, que não conseguia assimilar mais nada no mundo, além de sua presa. Mais intensas eram as inúmeras descargas elétricas em seu corpo e carne quando tocava aquele outro corpo. Um afago, um beijo no rosto, abraço, que fosse. Quando tocava aquele corpo transfigurava-se em uma bocarra cheia de dentes e saliva-água-na-boca. Eis que, numa noite dessas perdidas entre o ócio e o trabalho interminável, um corpo resolveu ligar para o outro.  Era uma conversa-abraço, uma conversa-toque. Uma voz contentando-se com a outra voz. Depois disso, encontraram-se os dois. Um abraço, um beijo no rosto, cumprimentos, a parte, foram ao que interessava:
-Eu preciso que você me ajude numas coisas. Tô completamente...
Cortando a frase daquele corpo:
-Claro que ajudo! Eu não estou fazendo nada.
-Ai, valeu mesmo, viu?! Sabia que poderia contar com você. [sorriram-se]
-Não dizem que amigos são pra essas coisas?
Sorriram-se, novamente, um corpo olhando para o outro. Há uma pequena pausa que perdura por uns instantes, mas que para os dois corpos soa como uma pequena eternidade. Até que um corpo disse para o outro corpo:
-Pois então, me explica o que devo fazer.
Um corpo explicou ao outro e assim passaram algumas horas. Cada corpo inclinado em seu objetivo. Entre risos, uma conversa inacabável sobre todos os assuntos ao mesmo tempo. Entediaram-se os dois corpos com o trabalho.
Quando já exaustos, às tantas da madrugada, já a base de cafés, um corpo colocou-se retesado sobre o chão, cabeça sobre uma almofada. Convidou o outro corpo a fazer o mesmo. O outro corpo fez. A conversa ficou densa, lenta, até que resolveram de modo quase telepático parar. Silêncio.
Dois corpos e um lençol. O frio, que entrava pela janela que não fora fechada por preguiça mútua, fez com que um corpo dividisse o lençol com o outro. Aproximaram-se. Mais. Era tão estranhamente esperado aquele momento, mas, ao mesmo tempo, Pairava sobre suas cabeças uma atmosfera um tanto pesada. Permaneceram os dois corpos retesados. Estáticos sobre o tapete do apartamento.
 Dentro de si, uma revolução de sentimentos e estímulos. Era como que sempre quisesse aquilo. Porém nunca houvera momento. Coragem, melhor dizendo, para tal. O corpo alheio também esperava por isso, mas não sabia. Por vezes esboçava algum gosto por aquilo e bem que provocava. É verdade.
Eram dois corpos. Um de costas pro outro. O silêncio do mundo era entrecortado pela respiração profunda dos dois. Suas costas dançavam aos tremores de suas pulsações. Simultaneamente, resolveram se virar e falar algo. Seus rostos agora se encontravam frente a frente. E permaneceram inertes. Calados. Cada um sentindo somente o quente da respiração do outro em suas têmporas. Esboçaram um meio sorriso, um entrando nos olhos do outro.  E assim ficaram por segundos. Até que, um dos corpos deixou escapar:
-Engraçado...
O outro corpo complementou:
- Engraçado e estranho.
-Obrigado.
-Obrigado? Eu não. Por vontade própria.
Depois de ouvir a resposta, sua face avermelhou de tal forma que parecia pegar fogo. Abaixou as vistas e riu-se. O outro corpo, percebendo a reação deste corpo, dispara:
-Você é tão transparente quanto água. Fica com vergonha não. Sabe que eu tô com uma vontade de...
- Você também?
-Eu também o quê?
-Você também tem vontade?
-Muita.
- E por que não disse antes?
- Ah, não sei. Talvez porque você não havia me perguntado.
Riram os dois corpos.
-E agora, o que a gente faz?
-Isso:







Nada mais tinha importância naquele dia, naquele apartamento, naquela cidade. Era um mundo novo, suspenso, etéreo, tátil. Um mundo de sentidos. Entre os dois corpos o surgimento de uma nova era. Era uma gênese dual. Os dois corpos entrelaçados sobre o tapete do apartamento fizeram o dia amanhecer, como todos os dias. Só que bem mais tarde.