quarta-feira, 25 de maio de 2011

Mal Secreto

** Ler escutando "Mal secreto", na voz da Gal.

[ http://www.4shared.com/audio/c5bNKOza/03_Mal_Secreto.htm ]


Tudo começou como um acaso desses. Conheceu o homem durante uma viagem que fez a negócios. Fora as estressantes e tensas reuniões com acionistas e representantes internacionais, trocou conversas tímidas durante a estrada e fez-se agradável e linda. Um sorriso de homem que sabe o que quer para uma mulher não é coisa corriqueira. Sentaram-se um ao lado do outro. E fluidas foram as conversas – mais. 

- Nossa, você passa uma segurança. Sabe mesmo o que pretende. Poucos homens são assim. E o mais interessantes disso tudo é que ainda é agradável, inteligente e tem bom humor...

- Sei bem o que quero e não desisto. Mas me vejo bem em você. Ouvi tua conversa no telefone e fiquei pensando nisso. Talvez tenha sido isso. Eu ter me aproximado...

- Pode ser.

Conversaram horas sobre trabalho, vida, amores, gostos e desgostos. Música, teatro, dança, verso, bebidas, sonhos, segredos, morte. E neste ambiente só deles, o cosmo favoreceu. A lua orbitou na casa dos seus signos, de uma só vez. Até que o silêncio se instaura. Longo. O silêncio das bocas. Os olhos se permitiram percorrer toda a alma de um e de outro. Tudo no silêncio do mundo. Os únicos que perturbavam a calmaria do universo eram seus corações desritmados. Até que o silêncio é quebrado pelo homem:

- Antes de morrermos, posso fazer uma coisa?

Ana responde com uma pergunta, mas sabe o que ele quer fazer.

- O quê?

Silenciosamente. Um beijo.

 Um toque, um quase-amor. E ali ficaram durante toda a viagem. Como se aquele contato fosse de outros tempos. Ela que não é de se entregar, doou-se toda a ele. Ele dedicou-se àquele momento, que se suspendeu no ar tenso da viagem. Eram somente eles. Eram dois clandestinos escondidos, um dentro do outro, debaixo do grosso cobertor.
- Seus olhos são bonitos – diz Ana, de modo bem espontâneo e atento ao homem que era dela, naquele recorte de tempo-não-tempo, suspenso no ar. Ele devolveu um sorriso.
Tudo permaneceu indo e lindo. A viagem findou-se. Cada qual seguiu seus descaminhos e prometeram se encontrar. Ela estava bem. Passou o dia com o cheiro do corpo do homem em seu corpo, como se ele mesmo estivesse ali, de todo. Ele, não se sabe nada não.  Só que seu sorriso era lindo e seguro e feliz.

Alguns dias se passaram. Ana ainda vivia aquela situação tão atípica. Resolveu procurar pelo homem na internet.Não tinha o costume de fazer tal coisa. Na verdade, não tinha o costume de ter costume nenhum. Não é do tipo que se entrega. E brigando consigo, venceu-se o orgulho e despiu-se de toda armadura contra o mundo. Desejou com toda sua vida ser daquele homem e foi em parte nos dias anteriores e pensamentos. Todos os dias subseqüentes. Ana Achou o homem, seu homem. Achou mais do que gostaria. Ele era homem de outra mulher. Felizes, as fotografias esmurraram seus olhos, seu peito, seu corpo e sua alma toda. Um engodo, um nojo, um desgosto uma tempestade. Com uma mulher de escorpião com ascendente em leão não se brinca. É puro veneno. E, diante das fotografias diz com uma voz que vem das entranhas:

- Não. Não posso ficar com raiva. Mas tô. Com ódio. A vontade é de gritar um grito de morte, de desgraça, de vomitar gafanhotos, todas as sete pragas do Egito. Todas, todas elas. Em cima de você... Eu sei. Não posso ficar com raiva... Aliás, posso e posso e devo e quero e vou e estou e estou sendo e sou. Raiva. Do átomo às pontas dos cabelos. Com pude?!

Ela se ri de uma forma nunca antes experimentada e desesperada e, entre esse riso grotesco, não sabe se chora, se odeia e se se odeia e grita. Diante do espelho seu rosto desmancha junto com a maquiagem preta dos olhos. Passa as mãos amargas e odiosas por sobre os cabelos desgrenhados e escorre-as pelo rosto, borrando a boca vermelha. E ela inteira chora e grita e geme e se atira e atira palavras gritantes aos quatro cantos do mundo-quarto.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHH!
   Filho da puta filho da puta te odeio te amo e não amo e amo e odeio canalha viado viado filho da puta ignorante mentiroso lindo idiota você me enganou farsante tratante gostoso moleque mentiroso eu sou uma burra bura bura burra muito burra e burra eu te mato e mato e me mato e morro e volto e  te odeio e odeio e amo e odeio e amo eu não quero e não posso e posso e te quero morto e vivo te detesto sai do meu corpo da minha pele da minha boca da minha cabeça  AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHH!!!!

Arranca a roupa. Entra no banheiro nua. Tranca a porta para que ninguém veja que ela é um mal. Prefere ser um mal secreto. Para os outros. Para si. Abre o chuveiro. A luz apagada é proposital, para não ver sua alma corrosiva. Ali, Ana radioativa e explosiva, ferve a água que cai em seu corpo-ódio. O universo gira ao contrário por conta de todo bolo de rancor e praga e corrosão deste corpo de mulher de escorpião. Escorre toda pelo Box.

 Naquela noite, Ana morreu, para acordar no dia seguinte. Se o sol tiver coragem de nascer.






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