terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

EXISTE


**Recomenda-se ler ao som de Summertime, da Janis. A Joplin, sabe?


Acordou diversas vezes durante a madrugada porque o calor estava absurdo. Levantava, bebia água, se molhava na pia e voltava a dormir. Denso. Como o calor. Por fim, acordou antes do despertador tocar mas desistiu de tudo e desmaiou novamente. Recebeu um telefonema. Era Ana. Falava ininterruptamente sobre sua coleção de novos problemas e outras conversas como trabalho, teatro, grana, política, contas a pagar, fim de relacionamento e geladeira pifada: assuntos que todos gostam de falar, logo pela manhã. Sua voz-rouca-e-pouca arrrranhava a conversa que por pouco não era monólogo, se não fossem algumas poucas interrupções suas.
- Te acordei, Carlos?
- Não. Minha garganta tá meio ruim mesmo.
Decidiu deitar no chão porque não aguentava de preguiça e calor. Em frente ao ventilador que soprava um bafo mais quente do que ele mesmo, naquele momento. Uma hora e blau de conversa, até que ele decidiu que.
Levantou-se. Precisava de um banho. Nu, em frente ao espelho olhava-se como um Voyeur o próprio corpo. Narciso-através-do-espelho. Água fria pra espantar os maus agouros e fazer trincar as articulações. Escorria por sobre o corpo, despertando pra manhã. Tesão de quem acaba de acordar: Na cabeça a imagem de uma mulher gostosinha currada por ele e outro cara igualmente gostosino, os três, sem fronteiras corporais- porque era um fetiche não realizado. Na mão direita o signo da virilidade e do poder: uma revolução, a quebra de um tabu. 1960, 1970. Uma herança. Ou, quem sabe, um legado?! É, masturbação mesmo, cara.Punheta, cinco por um - Por que, nunca fez? Porra, com essa cara, até parece...Como fazem os homens-sempre-garotos, como disse Nelson, o Rodrigues, sabe? "eternos anjos pornográficos" blábláblá... Arrumou-se.
Um gosto amargo na boca como quem tivesse bebido leite azedo. Era o gosto dele mesmo. O gosto de uma madrugada quente e densa e sozinha. O mingau das almas, como disse uma vez um amigo. Então, ele era o mingau da sua própria alma. auto-antropofágico. Hum, Interessante. Escovou os dentes, na tentativa de eliminar o amargo. Até conseguiu. Substituiu o gosto de si pela menta-hortelã-não-sei-o-quê da pasta de dentes. Lembrou que era podre e cheio de bolor. Sorriu feliz e saiu da casa.
Foi ganhar a vida. Trapaceando, é claro, porque ninguém é de ferro.
Chegou no "quase" trabalho - porque aquilo que ele fazia era trabalho mas não era, ao mesmo tempo. Meio copo de café, pra amargar de vez tudo aquilo e manter acordado, quase-aguentando, com uma fatia de pão ázimo, pra se redimir - um pouco - dos pecados - muitos - e da masturbação matinal. Pão ázimo lembra Jesus Cristo, os apóstolos e aquela história toda que nos faz sedentos dalguma santidade, castidade...Re-den-ção! Bonito, né? E assim foi novamente. Pôs-se a escrever. Ao som de Sommertime, com a voz rouca, quase-igual-a dele, da Janis. A Joplin, conhece? Então. Até que gostou.E quase sonhou. Mas acabou por lembrar que não sabia como fazer aquilo...Por isso, ficou a remontar um passado já vivido, não por ele, graças aos cheiros e imagens e às sensações físicas e as da alma, sugeridas pela música, acompanhada por um cigarro de filtro vermelho.
- Ai, nostalgia de um tempo não vivido. Isso existe?
Existe.

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