segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Etéreo.

** Ler escutando Mensagem de amor, de caetano Veloso.


Era um pouco mais. Era como se estivesse só no mundo-apartamento, com uma janela de frente para o calçadão. Era como se morasse lá, em cima do horizonte. Etéreo. Era um ar fresco e denso. Um ar que se podia sentir por entre os cachos de cabelo castanho-claros. Um ar fresco que resvalava pela e pele branca - quase avermelhada pelo sol da estação mais esperada porque era a cara de sua cidade. Porque era a cara de todos. Estava ali, ele, com seu corpo e sua mente: não pensava em nada. Acho que não era nada. Ou não.
Sim, estava ali, ele mesmo, com seu corpo, seus cachos castanho-claros, sua pele branca quase avermelhada, um vento fresco e denso, um vento resvalando e só. Ele, sozinho, à parte, era sem ninguém, sem alguém: Era ele e só. Era ele, sem o Deus. O mundo todo e ele só. Observava todo o mundo ao seu redor: cada fragmento de coisa, cada coisa, cada inação do nada em volta de si. Aspirou fundo o ar, percebendo seus pulmões, soltando-o com vagareza. Ao peito, um ritmo quase cadenciado do músculo-coração-de-carne. Se fechasse os olhos, não via nada além de um breu, que poderia ser ele, momentos antes. Mas é que agora não via nada mesmo, ao fechar os olhos. Mas sentia. Sentia na mesma cadência um fluxo, Um gosto de ferro. Um fluxo que fazia tremer suas pálpebras e incharem os dedos das mãos. Percebeu um pescoço: uma ligação. Um duto. Percebeu um sangue que não via.
Texturas diferentes, lisas, rugosas, ásperas mãos e pés lânguidos e transpirantes. Uma figura lânguida, músculos aparentes, costas. Plexo e bacia, ombros, esterno, diafragma, abdômen. Isso era um corpo. Ele era um corpo. Ele estava sendo um corpo inteiro ali, com ele mesmo: nele. Surpreendeu-se: nunca tinha sido um corpo inteiro. Quando faz um gesto, descreve uma linha no horizonte, uma trajetória no ar, que por quase um segundo se mantém e se desfaz.
Com a mesma consciência que acabara de nascer ali, ele olhou com o corpo todo, em trezentos-e-sessenta graus, o universo inteiro.
Viu uma natureza também sozinha. Uma árvore, uma amendoeira. Torta, grande, folhas verdes. Uma árvore sozinha no mundo. Um ser. Descobriu que a árvore não lhe causava afetação alguma. Nenhuma.
– Uma árvore é uma árvore e eu sou eu. Uma árvore não é nada. Eu sou eu. Uma árvore não é nada porque não poder dizer que é, mas também não pode dizer que não. Por isso não é. Eu posso, eu sou porque posso e sou. É isso.
Duas mãos, cinco dedos em cada mão. Um corpo inteiro e novo. Ele fecha os olhos e enxerga com cada dedo todo o corpo. Reconhece-se em si mesmo e sabe que está sendo ele mesmo ali.
Desce as escadas e descobre coxas, pés, joelhos. Articulação. Ele tem duas pernas e não três, como havia pensado. Ele não era um tripé há muito tempo. Desde hoje. Agora, em frente a coisa-árvore, olha-a com olhos, mãos, dedos e tórax. Descobre que no mundo há, além de seu corpo completo, inteiro, há também uma árvore. Perdoou a árvore por não poder dizer que era, que estava sendo uma árvore e só. Atravessou a avenida e chegou à areia cor de areia: ali, era ele, o mar, a areia e lá longe, a árvore. Deitou na areia e descobriu a sensibilidade das costas, braços e tudo. O universo de cima caia por sobre seu corpo todo, em um azul intenso da noite, estrelas e lua redonda. Fecha os olhos.
Alguns minutos. Ou não. Horas.
Levantou-se e andou sem rumo, em cima da areia. Tão completamente etéreo e só, tentando ver pelo corpo todo. Anda de costas para ver o horizonte indo e indo e indo...
Para. Há algo cujo corpo não tinha visto. Algo afetou sua trajetória, se traço no horizonte. Vira-se. E era um conjunto de pedaços. Uma matéria igual a ele, mas diferente. Também só. Longos cabelos e negros. Entre um e outro um abismo de silêncio separando os corpos. Alguns minutos. Ou não. Horas. Um universo parado, à espera de alguma ação. Vagando entre os astros um momento suspenso. Eram somente olhos e corpos até então. A garganta secou, a areia chupou a transpiração de seus pés lânguidos. Seu músculo-coração-de-carne aumentou, numa decadência. Ela apertava uma unha contra outra. O vento movia os cabelos e quase escondia seu rosto. Olhos castanhos. E intensos. Ele sozinho, à parte. Ela solitária e inerte. Até que ambas as carnes tocaram-se. Vinte e nove músculos gritaram. Duas línguas. Lábios e dentes. Mãos todas e tórax.
E foram os dois embora. Ele, antes sozinho e ela, solitária no universo-praia. Agora, um ensinava ao outro como ser sozinho a dois.

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