domingo, 29 de maio de 2011

Notas sobre um dia depois de tantos outros


Notas sobre um dia depois de tantos outros


Aos ouvidos a cantilena que desperta e mastiga todarquitetura corporal, além de encurralar o espírito no canto do quartescuro da subjetividade:
 “Existirmos: a que será que se destina?...”
É o tipo de pergunta que não se é para responder. Mas é. É o tipo de pergunta que é para ser buscada. Vivida. Ele pensa, com o ser quase inteiramente mergulhado em sua lama particular. Em sua frente o caderno qual anota toda e qualquer sinapse. Nele  escreve para um outro corpo. Mas também fala de si-para-si:
 - Eu tenho o potencial para arrastar tudo que estiver ao meu entorno, assim como uma tromba d’água. Sou uma catástrofe desmedida. Envolvo todo mundo nas minhas tempestades e, por onde passo, não deixo pedra-sobre-pedra. Hoje, quem chove é o tempo. Permiti a natureza chover. É uma água que limpa. Que lava. Purifica. Mas, isento-me desta purificação. Derramo por sobre o rosto uma chuva ácida, contaminada. Cheia de agrotóxico. Descarrego uma chuva salobra, sem oxigênio.
Silencia o espírito gritante por um tempo. Ouve os pingos da chuva. Percebe-se. Retoma o diálogo consigo:
 - Estou aqui, sentado, vendo o tempo chover. Olho. Nada, além disso. Sob meu nariz a piscina que hoje não tem o azul de Amaralina, mas a cor de um pântano. Hoje, está vazio, quase. Estou sozinho, esperando pelo corpo que já foi embora. Tentando ver nos poucos corpos que vêm portadentro o corpo qual espero e espero e espero e espero.
Hoje, estou existindo de modo diferente. É um existir quase sutil, se não fosse pela angústia, pelos resquícios de choro-tempestade, e pela lembrança do momento em que me despi da pele e revelei-me a hecatombe com formas humanóides. Não posso dizer se estou feliz. Não posso. Sinto somente um vento que percorre os espaços entre meus órgãos e ossos.
Não sei o que fazer. Estou parado e angustiado por não estar em movimento. Estou com fome e com fome vou continuar porque não tenho o que comer. Somente este tempo, que não mata a minha fome. Eu precisava falar com alguém. Cheguei e você já não estava mais. Sofro. As coisas estão densas e tensas. O deus resolveu dormir até mais tarde e não veio comigo. Saí de casa e não disse pronde ia. Sem bilhetes, recados. Nada. Deixei tudo. As cores do meu corpo, o sorriso. A pouca coerência que me foi dada. Só trouxe a dor das costas, os olhos pesados; as marcas do rosto e a vontade de chorar um pouco mais. Estou completo, então. Acho que não. Eu não sei. Eu nunca sei. Mais uma vez eu tenho medo e paro na beira do abismo. Penso. Repenso. Fico parado.
É muito ruim e difícil morrer sozinho, parado. Na calmaria. O horóscopo disse que entrarei em uma fase muito boa. O sol iluminará a minha lua e, por isso, terei um “levante”. Sim. Estou vendo o “levante”: de toda a confusão que já sou e não me basto. Eu queria que estivesse aqui, comigo. Eu devia ter chegado mais cedo. Meu corpo hoje e ontem e anteontem se moldou para teu abraço forte, que se parece com o meu. O meu abraço. Eu também quero abraçar o corpo que ontem eu machuquei e fiz sangrar...

Ele fez sangrar o corpo e depois, sangrou-se também. Não agüentou e abriu as comportas da represa. Caiu e rasgou-se nos cacos de si mesmo. Rasgou os olhos, pés e rompeu ligamentos e tendões. Cheio de fraturas e escoriações, seguiu para dentro de si. E, em sua via-sacra particular, caiu pela terceira vez. Sem que ninguém o visse.

Um comentário: