terça-feira, 13 de abril de 2010

Estranho

Acordou. Como todos os dias faz. Não por querer. Mas porque a vida exige que você acorde: exige que você levante da cama.
Tudo lhe parecia tão confuso. Não sabia mesmo se fazia parte daquele lugar. Naquele dia, ele acordou de um jeito diferente. Como não fazia todos os dias...
Acordou com um nó, não sei. Uma vontade de chorar. Uma tristeza que não sabia de onde vinha e porquê vinha. Levantou o tronco da cama e se pôs sentado. Nu, com o lençol branco por cima do sexo. Sentou curvo, como se fosse ele “O Pensador”, de Rodin.Tentou descobrir, sem sucesso, a causa de tanta tristeza. Do jeito que estava foi. Pôs-se em frente ao espelho grande que havia no quarto. Gostava de espelhos. Mas sentiu vergonha e assombro, naquele dia, de ver tanta estranheza. E ficou ali, sem muito se mover, olhando, olhando, como quem quisesse descobrir mais de si. Mas é que não conseguia.Então, fechou os olhos e tentou olhar para si, por dentro. Não via nada. Via o nada. Engoliu-se a seco. E quando abriu os olhos: chorou.
Era um silêncio maior do que ele. Intoleravelmente maior do que ele. Ali, naquele quarto de apartamento, ele brincava de construir um futuro para si, de construir uma identidade, um rótulo. Um quarto de um futuro graduado em - o quê mesmo? - ah, sim, Medicina. A Medicina: "Arte e ciência de curar e prevenir as doenças.". "A mais nobre das profissões", pensava até então. Ter a habilidade de curar doenças e salvar vidas, por assim dizer, era como se ele fosse o próprio Deus. Mas era um deus antropomorfo, bem pintado. Um deus de gesso. Um deus que se se é quebrado esfarela e só se tem o oco. Então, ele era um deus morto.
Sentou-se de fronte ao espelho e chorava consigo mesmo, talvez de medo, talvez de vergonha. Talvez porque era ele mesmo. Ou não. Pode ser que não fosse ele mesmo. Pode ser que ele fosse todaquela nomenclatura de futuro-doutor-na-família. Mas a nomenclatura - descobriu ele - a nomenclatura que era de gesso. E o gesso quebrou, virou pó e o oco era a sua personificação.
Confuso, repetiu para aquela figura estranha do outro lado do espelho que, por incrível que parecesse, era ele mesmo:
_ Eu sou Caio Albertini, tenho 25 anos. Estudo medicina. Quero ser médico e...eu não sou isso que estou vendo. Eu não isso, eu não sou. Não. Eu não isso. Eu não sou isso. Eu não isso. Eu não isso. Eu não isso. Não. Eu não sou. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou eu. Eu sou isso. Eu sou horrivelmente isso.
Tomou banho. Vestiu-se. Comeu algo e saiu.
Entrou no mundo que, até então, jurava não fazer parte. No meio de tanta gente ansiosa para atravessar ficou. Comungando da mesma ansiedade, esperando o sinal vermelho, cor que gostava. Sinal vermelho. Foi atravessado com os outros corpos apressados e engravatados.
Procurou um amigo. Mais velho. Médico.
- Cara, estou doente. Você precisa me receitar alguma coisa. Me examina. Me encaminha pra qualquer coisa. Você precisa fazer alguma coisa comigo. Eu estou doente.
O amigo examinou. - Pressão arterial 12 por 8, normal. Respira. Solta. Batimentos normais. Muco, respiração, coloração das gengivas, íris. Tudo normal. Você não tem nada.
- Não é possível...
- Sim, é possível. Tão possível que você está sem nada. Está limpo.
Caio não acreditou. Saiu do consultório, deixando no ar aquele encontro pra tomar uma cervejinha, mas que nunca ocorreria. - Vamos marcar uma cervejinha qualquer dia desse, caio? Só pra esfriar a cabeça.
- vamos sim! Te ligo. Um abraço, cara!
- Não é possível. Não é possível...tem alguma coisa errada. Eu sou a coisa errada. Eu sou o meu erro. É isso!
Caio não foi à aula, como também não ligou pra namorada e muito menos quis qualquer outra coisa, além de.

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