quinta-feira, 1 de abril de 2010

Entre-corpos


Já não era inesperada toda aquela onda de desejo sobre o corpo alheio. Muito menos óbvia a vontade de mergulhar de peito aberto às suas pulsões freudianas. Óbvio não era mesmo. A cada vez que se deparava com aquele corpo em sua frente, era como se sua fome de fera aguçasse de tal forma, que não conseguia assimilar mais nada no mundo, além de sua presa. Mais intensas eram as inúmeras descargas elétricas em seu corpo e carne quando tocava aquele outro corpo. Um afago, um beijo no rosto, abraço, que fosse. Quando tocava aquele corpo transfigurava-se em uma bocarra cheia de dentes e saliva-água-na-boca. Eis que, numa noite dessas perdidas entre o ócio e o trabalho interminável, um corpo resolveu ligar para o outro.  Era uma conversa-abraço, uma conversa-toque. Uma voz contentando-se com a outra voz. Depois disso, encontraram-se os dois. Um abraço, um beijo no rosto, cumprimentos, a parte, foram ao que interessava:
-Eu preciso que você me ajude numas coisas. Tô completamente...
Cortando a frase daquele corpo:
-Claro que ajudo! Eu não estou fazendo nada.
-Ai, valeu mesmo, viu?! Sabia que poderia contar com você. [sorriram-se]
-Não dizem que amigos são pra essas coisas?
Sorriram-se, novamente, um corpo olhando para o outro. Há uma pequena pausa que perdura por uns instantes, mas que para os dois corpos soa como uma pequena eternidade. Até que um corpo disse para o outro corpo:
-Pois então, me explica o que devo fazer.
Um corpo explicou ao outro e assim passaram algumas horas. Cada corpo inclinado em seu objetivo. Entre risos, uma conversa inacabável sobre todos os assuntos ao mesmo tempo. Entediaram-se os dois corpos com o trabalho.
Quando já exaustos, às tantas da madrugada, já a base de cafés, um corpo colocou-se retesado sobre o chão, cabeça sobre uma almofada. Convidou o outro corpo a fazer o mesmo. O outro corpo fez. A conversa ficou densa, lenta, até que resolveram de modo quase telepático parar. Silêncio.
Dois corpos e um lençol. O frio, que entrava pela janela que não fora fechada por preguiça mútua, fez com que um corpo dividisse o lençol com o outro. Aproximaram-se. Mais. Era tão estranhamente esperado aquele momento, mas, ao mesmo tempo, Pairava sobre suas cabeças uma atmosfera um tanto pesada. Permaneceram os dois corpos retesados. Estáticos sobre o tapete do apartamento.
 Dentro de si, uma revolução de sentimentos e estímulos. Era como que sempre quisesse aquilo. Porém nunca houvera momento. Coragem, melhor dizendo, para tal. O corpo alheio também esperava por isso, mas não sabia. Por vezes esboçava algum gosto por aquilo e bem que provocava. É verdade.
Eram dois corpos. Um de costas pro outro. O silêncio do mundo era entrecortado pela respiração profunda dos dois. Suas costas dançavam aos tremores de suas pulsações. Simultaneamente, resolveram se virar e falar algo. Seus rostos agora se encontravam frente a frente. E permaneceram inertes. Calados. Cada um sentindo somente o quente da respiração do outro em suas têmporas. Esboçaram um meio sorriso, um entrando nos olhos do outro.  E assim ficaram por segundos. Até que, um dos corpos deixou escapar:
-Engraçado...
O outro corpo complementou:
- Engraçado e estranho.
-Obrigado.
-Obrigado? Eu não. Por vontade própria.
Depois de ouvir a resposta, sua face avermelhou de tal forma que parecia pegar fogo. Abaixou as vistas e riu-se. O outro corpo, percebendo a reação deste corpo, dispara:
-Você é tão transparente quanto água. Fica com vergonha não. Sabe que eu tô com uma vontade de...
- Você também?
-Eu também o quê?
-Você também tem vontade?
-Muita.
- E por que não disse antes?
- Ah, não sei. Talvez porque você não havia me perguntado.
Riram os dois corpos.
-E agora, o que a gente faz?
-Isso:







Nada mais tinha importância naquele dia, naquele apartamento, naquela cidade. Era um mundo novo, suspenso, etéreo, tátil. Um mundo de sentidos. Entre os dois corpos o surgimento de uma nova era. Era uma gênese dual. Os dois corpos entrelaçados sobre o tapete do apartamento fizeram o dia amanhecer, como todos os dias. Só que bem mais tarde.

Um comentário:

  1. eu adorei! botar dois corpos conversando é uma loucura! por que sempre sai o mais intimo...

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