terça-feira, 28 de abril de 2009

Um fragmento que, não propriamente, fará parte da História.

-... parece-me que há um delírio... como em uma febre alta, um estado que transcende a lucidez, uma espécie de sonho, confuso.
Pega a caneca de louça vermelha. Põe o café.Toma todo o café da garrafa, lê sem atenção a correspondência que está há três dias em cima da mesa da cozinha.


De repente, uma fração de lucidez e possível indignação sobre a vida
e ...
a sensação de que tudo que foi feito não surtiu efeito,
em vão...
decepção! por não ter as coisas e pessoas do modo que imagina e espera. Relê a correspondência. Era uma carta da Nina dizendo que ficaria por mais um semestre em Madri porque era linda e porque tinham renovado o contrato dela por mais seis meses.

- Merda!

Depois de uns minutos disse para si, mas olhando para a carta:

- Que bom que estão gostando do seu trabalho. Você tem talento...talento para me deixar puto nesse buraco. E ainda vamos nos casar...


Indignou-se com a capacidade de tentar cobrir a carne viva, exposta da vida real com fantasias, sonhos. Quando se depara com o real - que choca-, o peito bate com disritmia...

"... tudo aqui é muito lindo, Carlos. Você precisa vir pra Madri. As coisas acontecem aqui. Sabe que nem sinto saudades do Brasil?..."

O incômodo, a dor que é a própria vida. Aqui, Carlos deixa de sonhar:

- O dia, lá fora, no mundo, está tão bonito. Todos felizes com a chegada do circo, pensou. Era como se o amor tivesse chegado com o domingo. O domingo que parece o último dia. Último, solitário, frio, vazio, humano. - É o domingo. Disse para si.
- O meu domingo chove... o do resto do mundo, não.E em Madri...
...
Confusão mental. E em um surto causado pela dor: Delírio. Mais. Pega a faca e, impulsivamente, faz ponta num toco de lápis esquecido na fruteira com três maçãs, uma banana apodrecida, uma laranja mofada, papéis velhos e cigarros apagados:

Com minhas tolas incertezas – tantas
- teci a mortalha do corpo em mim ainda vivo.
O corpo não comigo é sopro
Que se pode pegar com mãos não.
Vida fio de navalha, corta corpo vil e sangra.
Esvaiu-se alma, riso resto.
Acabou.

Confuso e indignado com o próprio ser acaba por matar a poesia que nele também é viva, parte dele, com a existência da verdade – mesmo ela sendo difícil de se ver - . Põe a poesia como um entorpecente do ser poeta, que de nada vale, a poesia. A não ser para embriagar a alma em farrapos...

Vem à tona todos os sentidos misturados, como se fossem eles - os sentimentos e eles, propriamente - um só. Sinestesia. Senta em frente à máquina de escrever, que fica numa mesinha de madeira maciça em frente a janela e escreve, de pés descalços, sem camisa, em vermelho:

- Por quê?

Auto pergunta-se, depois de tanto sentir.
já entorpecido de si, ameniza a própria dor de ser. Bebe café. A alma,lágrima.
Eis o ponto cego: a dimensão de dentro do próprio ser. Ele, dentro, que é a própria confusão, o acidente de si mesmo.
a vida esvaindo-se, o sol apagado pela boca do anjo que o engole e leva: leva a luz e deixa o vazio - de novo -, o frio, o anti-ninho. A morte.
despede-se da vida, de si mesmo afogado nas suas próprias verdades...na sua própria dor, na sua própria vida.
Docemente. Mais um dia, a vida o matou...

Passam-se sete meses

: agora, que não sou mais um feto, que não tenho a proteção de um ventre e todos os cuidados maternos intra-uterinos, sou impelido a respirar um ar pesado e sujo, de um mundo torpe e caótico que também ajudei a fazer. Um mundo que odeio com tanto amor. Um mundo que antes de me deixar vivo, me mata, se não me movo. É preciso sair do útero porque ele te trai. Se ficamos por pouco tempo, nos tiram a maturidade e somos cuspidos faltando parte. Se ficamos por mais tempo, nos cospem além de maduros.Como frutas mofadas e podres. A única possibilidade humana de ser vivo é ficar fora do útero e deixar de ser completo. É machucar-se, ter faltas, vazios, desejos, risos. E doer. Por isso, decidiu que não poderia mais ficar dentro de casa nem mais um minuto.
Do jeito que estava foi porta a fora.

-Eu mesmo cuspi-me do útero-casa, assim. E com o instinto de animal que sou, andei até achar o mar. E ali estávamos os três:
o mar, o mundo, Eu e mais ninguém.
senti o infinito tão intensamente solto que invejei mais uma vez(porque invejava sempre!)o mundo, o mar e o universo. Isso é uma injustiça maior do que tudo.
Eu não quero acabar um dia. Não.

Carlos ficou ali, entre o mar e o mundo por alguns minutos. Até que o mar urrou para ele em forma de ressaca, como se estivesse expulsando-o dali, como se o dessesse:

- Vá embora! Saia! Não se aproxime!

Carlos não se intimidou com o mar e urrou pra ele também. Agora, eram dois leões e o mundo.
Carlos atacou o mar de peito aberto, e como toda fera tem presas, o mar mastigou Carlos inteiro e Carlos, Carlos batia no mar, dava-lhe patadas, urrava: mais. Neste ínterim, o mundo estava lá e não fazia nada porque não sabia fazer nada além de ser mundo.
Mar é bicho brabo e Carlos sabia disso. Só que Carlos é bicho traiçoeiro. Pior que isso, é bicho-homem. Mas depois de tanto um bater no outro e outro bater no um, suas feridas vazaram e o líquido quente de Carlos e o líquido gelado do mar se misturaram e formaram uma pasta quase homogênea. O sangue do mundo.
O bicho-mar, cansado, cuspiu o bicho-Carlos no mesmo instante em que ele cuspira-se do mar. Saiu da boca do mar. Peito aberto e arranhado, seus cabelos lambidos. Cheio até a alma de areia. Seu corpo e todo resto lavado de água, sal e sangue.

-Andei devagar até a areia e parei. De pé. De frente pro mar. Como antes.

Sentiu a arrebatadora ventania fria dos dias de agosto. Percebeu que seu corpo, quando lutava com o bicho-mar e consigo, era verão. Fora do mar, seu corpo era inverno como o mês de agosto.
Sentiu frio de arrepiar a nuca, escamar a pele, bater o queixo e doer as articulações:
estava feliz.

Após reconhecer a natureza em si e reconhecer-se nela, foi. Andou pelo mundo, que no final das contas, também era ele mesmo.

Um comentário:

  1. CARALHO!

    THIAGO VAMOS NOS CASAR LITERALMENTE?

    NOSSAS PALAVRAS VÃO AMAR TROCAR CARICIAS!

    BEIJOS AMIGOOO!

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